23 de junho de 2017

Isto é sobre viver

(texto originalmente escrito para o portal O Tuga com o título Ser Feliz é Uma Escolha)
Já contei a minha história muitas vezes e em fóruns diversos. Já tive duas horas para o fazer, já tive menos de uma, já tive dezassete minutos, o recorde foi conta-la em dez. E, todas as vezes que a contei, nunca o consegui fazer sem ser pelo seu lado positivo.
Fiquei de cadeira de rodas com 15 anos. Era uma adolescente feliz, cheia de planos. Tinha tido uma infância fantástica, marcada pela liberdade de quem vivia no centro da cidade, mas que desde muito cedo pôde fugir dela ao fim de semana, para uma casa perto da praia.
Da outra margem do Tejo ficava a Caparica. Era lá que tínhamos a maioria dos nossos amigos. Era lá que saltávamos os muros dos vizinhos para lhes roubar a fruta dos quintais. Era lá que gastávamos os 1000 escudos da semanada em gelados ou campeonatos de matraquilhos e snooker. Era lá que os meus pais nos deixavam passar o dia a andar de bicicleta pelas estradas de terra batida que se enchiam de poças lamacentas quando chovia e era também era lá que nos deixavam ficar na rua até tarde.
Já a semana era passada em Lisboa, entre o Bairro de Alvalade e a Avenida de Roma. Um dia, sozinha em casa, enquanto tomava um duche para mais um dia de escola, senti-me zonza, sentei-me, desmaiei ainda lá dentro e entrei em coma. Quando acordei, 5 horas depois, já no hospital, disse “estou bem mas não sinto as pernas”. Estava paraplégica. Tinha 15 anos e o meu cérebro tinha perdido a capacidade de comandar a parte inferior do meu corpo. Tinha deixado de poder andar.
Marta Guimarães Canário
 Os anos que se seguiram foram de tratamentos, dentro e fora de Portugal. Mas também de regresso à normalidade, numa vida que, a partir daquele momento, passou a ser vivida sentada numa cadeira.
Quando, depois de 4 anos a fazer de tudo para voltar a andar decidi largar os tratamentos (que, já agora, não traziam resultados), era uma jovem de quase 20 anos feliz, que continuava cheia de planos e que se sentia capaz de conquistar o mundo. A cadeira estava lá, mas o único papel que eu deixava que tivesse na minha vida era o secundário: apenas uma forma de me deslocar. E isso era algo que eu devia a mim, claro, mas, acima de tudo, a todos os que me rodearam de carinho e de atenção durante aqueles anos, onde a família teve lugar de destaque. E a vida, essa, seguiu em frente.
Tudo decorria dentro da normalidade, até que, aos 29 anos, depois de sair de um problema simples de vesícula, mas que me tinha feito perder muito peso, fiz uma escara na nádega que infetou e se complicou. As escaras são feridas comuns em pessoas em que a mobilidade está condicionada. E, normalmente, são feridas profundas que demoram algum tempo até fecharem. Já tinha tido várias, tinha conseguido curá-las sempre, mas aquela descontrolou-se e infetou. Fui tratando dela, como já tinha feito com as outras, mas a verdade é que a deixei avançar demais e, quando dei por mim, o meu corpo debatia-se contra uma infeção generalizada – conhecida por septicémia – e já estava em risco de vida.
Voltei ao hospital, mas desta vez para uma experiência mais dolorosa: dois meses de internamento, seguido de outro, e mais um, e mais um. Passei por altos pouco altos, baixos muito baixos, dias em que achei que tinha perdido a esperança de me safar, mas outros em que me agarrei a tudo o que me restava e a todos os que me rodeavam para sobreviver. Quando olhei para trás, tinha passado 6 meses internada e mais de 2 anos entre médicos disto ou daquilo, até me voltar a sentir bem.
Estive presa por um fio mas, mais uma vez, ganhei.
Foi durante este período que percebi que também eu tinha um limite, e que, para não me deparar de novo com ele, tinha que ouvir mais o meu corpo. Prestar-lhe mais atenção.
Desde essa altura, declarei guerra às escaras. Passaram-se 12 anos, e nunca mais tive nenhuma.
O livro “Ser Feliz É Uma Escolha”, que escrevi há 1 ano, conta estas histórias, mas também conta muitas outras. Porque estas duas, por si só, não me definem. A mulher em que me tornei foi influenciada por elas, é certo, mas marcaram-me igualmente os fins de semana na Caparica, as férias grandes passadas entre Magoito e Tomar, os primeiros namorados, as saídas à noite. E, ainda, o nascimento da minha sobrinha, o amor pelos meus cães, o meu trabalho, os meus sonhos, as minhas causas e até os meus medos. Está tudo naquelas páginas.
O “Ser Feliz É Uma Escolha” é a minha vida passada em revista. São 40 anos contados na 1ª pessoa, sem filtros e apenas com um objetivo: mostrar que, apesar dos solavancos, a vida vale cada minuto.

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