Os dias que termino na Gare costumam ser uma espécie de injeção de energia
que depois uso para aguentar os que se seguem, até voltar a ser 4ª feira, e
regressar lá.
Mas ontem não foi assim. Cheguei cedo, encontrei a Mariana pelo caminho e
fizemos juntas os últimos metros até ao ponto de encontro habitual.
Assim que me viu, o Chico, arrumador de carros que anda por ali desde que
me lembro, veio ter comigo e disse-me “Então, Marta? Não me ligou para a ir
ajudar…”. Ele sabe que o percurso por baixo da Gare, depois de sair do
centro comercial, é demasiado inclinado, demasiado longo, e que me custa fazê-lo.
No dia em que se apercebeu disso, deu-me o seu número de telefone e pediu-me que
lhe ligasse antes de o iniciar. “Desço as escadas num instante e vou lá
empurrar-lhe a cadeira, na boa, pá.” E sempre que lhe liguei foi. Mas ontem
encontrei a Mariana, não liguei ao Chico e ele estranhou.
Quando chegámos, já lá estavam alguns dos nossos amigos de rua. Em fila,
para receberem a refeição quente, o pão, a fruta, o bolo e o chá. E, quando é
possível, a roupa.
Enquanto esperávamos que chegassem todos os voluntários, fiquei a conversar
com os sem-abrigo que estavam mais próximos. E, nisto, “A Paula morreu...”, disse uma
senhora que estava no início da fila.
De repente, fiquei só eu e aquela mulher. Como se todos os outros tivessem
desaparecido. Nos minutos que se seguiram, tive a sensação de que a ouvia mas
apenas ao longe.
“Morreu? Mas morreu como!?”,
perguntei eu, surpreendida.
“Foi atropelada ali para cima,
morreu na hora.”, respondeu.
Ainda a ouvi a dizer que a notícia estava na internet e que se via uma foto
com uma ambulância ao lado de um corpo tapado com um lençol branco. Mas naquele
momento, a minha cabeça focou-se apenas nas tantas vezes que eu e a Paula tínhamos
ficado a conversar, antes ou depois da distribuição de refeições das 4ªs
feiras.
Sabia pouco da história dela. Apenas que tinha perto de 45 anos e que se tinha
juntado com o Francisco, um sem-abrigo que eu conhecia desde o meu 1º dia na
Gare. Com eles sempre, a Funny, uma rafeira grande, de pêlo preto espetado,
magrelas mas muito bem tratada. Parecia-me uma cadela feliz. E eu, claro, nunca
lhe resistia.
O nosso amor pelos animais unia-nos mais do que outro tema qualquer, por
isso era da Funny que falávamos. Contava-me como gostava dela, que era
a sua maior companheira. Isto enquanto ela brincava com as garrafas de água, refastelada
no pedal da minha cadeira.
Um dia a Paula apareceu com o lábio inchado e todo cozido. Tinha dificuldade
em falar e disse-me apenas que tinha caído. Soube ontem que tinha sido por
causa de uma bebedeira que tinha apanhado. Mais uma. A última, até àquele dia
em que atravessou a estrada num sítio proibido e foi atropelada por um carro
que não a viu. “Foi para os Santos, bebeu demais outra vez, passou pelo buraco da
rede e decidiu atravessar ali a estrada.” alguém comentou. Já não bebia há
meses, achava que estava a conseguir controlar o vício que a andava a matar aos
poucos.
Voltei a concentrar-me na voz da colega de rua da Paula. “O Francisco ia
com ela e disse-me que as suas últimas palavras foram para mim. Pediu para eu e
o meu marido a perdoarmos.”. Não faço ideia do que poderia ter acontecido entre
elas, mas perguntei “E perdoou?”. Respondeu-me que sim, e naquela altura senti
um nó na garganta. Mas senti também alívio por perceber que o último pedido da Paula tinha sido atendido.
O Francisco estava do outro lado da rua, com a Funny. Quando me viu aproximou-se,
olhou-me nos olhos e disse-me “Morreu…e agora fiquei sozinho. Não tenho nada.”. Agarrou
a Funny pela trela e afastou-se para o fim da fila.
Fiquei gelada, sem qualquer capacidade de reação e rezei para que não
começasse a chorar.
A rua é muito cruel. As pessoas que vão ali ter connosco estão quase sempre
magoadas, revoltadas e desiludidas. Com a vida e, tantas vezes, com elas
próprias. Porque falharam e não conseguiram dar a volta. Depois disso,
vem a vergonha, o não suportar encarar que estão naquela realidade. E eis que o álcool e a droga se instalam, como forma de esquecer tudo, pelo
menos por momentos.
Uns resistem a tudo isto e conseguem regressar à sociedade. Outros nem tentam.
Perderam a esperança e deixam-se estar por ali. Na rua, ao frio e ao calor. À
espera. E nós, por muito pouco que levemos, nunca lhes faltamos.
Como disse aquela mulher que estava na fila: “Era boa miúda, foi descansar...”.
(Para ti, Paula)