1 de dezembro de 2017

Colocar ao serviço dos outros o conhecimento adquirido

Depois de passar por tudo o que passei, percebi que devia colocar o conhecimento que fui adquirindo em alguns momentos da minha vida ao serviço de quem realmente precisava. Aprendi tanto com eles que não seria justo guardá-lo só para mim.
A primeira vez que o senti foi por volta de 1991, depois de ficar paraplégica, na sequência de um acidente em casa. Reforcei-o em 2004, quando estive por um fio, com uma septicémia grave, resultado de uma escara deixada à solta, que acabou por infetar.
Dois momentos-chave, o primeiro aos 15 anos e o segundo aos 29, que enfrentei com tudo o que tinha, e superei. Resultado? Sem sequer ter tido tempo para dar conta, passaram a ver-me como “exemplo a seguir”, “lutadora”, “guerreira”, “força da natureza”. E a responsabilidade aumentou. Mal sabia eu que este era só o início de uma viagem e que essa viagem não teria fim.
Ver texto completo no Delas.


1 de novembro de 2017

O pior destino?

Trago-vos um daqueles temas que nos entra todos os dias pela casa a dentro e que poucos dão por ele.
Mas antes, uma espécie de disclaimer: cá em casa segue-se a novela de um dos canais nacionais. Por vezes saltam-se episódios mas, na maior parte dos dias, o hábito faz-nos olhar para a televisão depois das notícias da noite. Sempre foi assim, sempre será.
Posto isto, não é a primeira vez que, no decorrer da história, quando algo de muito trágico tem de acontecer a alguma das personagens, se opta pelo mesmo. Já vi acontecer à jovem adorável que vivia um amor sincero com o galã e que, por isso mesmo, era invejada pela vilã, que tudo fazia para os separar. Mas, por regra, acontece aos vilões. Aos maus da fita.
Ver texto completo no Delas.




14 de outubro de 2017

Não te esqueças de sorrir

O mundo dos sem-abrigo é um mundo em que a droga, o álcool e os problemas psiquiátricos são “reis e senhores”. Quem conhece o ambiente em que me movo às 4ªas feiras percebe o que eu quero dizer.

José, nome fictício, para o proteger. Quando me cruzei com ele na Gare, rapidamente percebi que não encaixava naquela equação. Sempre impecável, sempre educado, sempre discreto, sempre humilde.

Um dia aconteceu ficarmos à conversa e contou-me, finalmente, a sua história. Desavenças familiares, falhas enormes de comunicação e orgulhos em cima da mesa ditaram o afastamento.

Depois disso, o desemprego, outros países, outra vez a vida a virar-lhe as costas. Veio de assalto a falta de capacidade para se endireitar sozinho e, daí até à rua, foi um passo curto.

Ouvi-o, desejei-lhe força e coragem para continuar a enfrentar aquela realidade, e dei-lhe os parabéns por conseguir fazê-lo sempre sem cair nas tentações que a rua esconde a cada esquina. E fui para casa sem conseguir tirar aquilo da cabeça.

Foi naquele momento que me lembrei que, dias antes, vira um post do Vasco no Facebook, a pedir um copeiro para integrar a equipa no seu restaurante, situado numa zona nobre de Lisboa.

No dia seguinte liguei-lhe, arrisquei e perguntei-lhe “Queres dar uma oportunidade ao José? Algo me diz que ele não vai falhar.” Respondeu-me, sem hesitar, “Sim, quero”. Depois disto combinámos o dia para os apresentar e, mais uma vez, o José chegou mais cedo, impecável, educado, discreto e humilde. Já o Vasco chegou nervoso.

Lembro-me de duas coisas que ele lhe disse, logo para começar “O que tenho para ti é trabalho. Estás preparado para trabalhar?”. O José respondeu que sim. E terminou com um “Então amanhã vens ter comigo à porta do hotel, ao meio dia, e vamos ver como corre.”. “Chegarei às 11h”, respondeu o José, já de lágrimas nos olhos. Ele e eu, caraças.

Isto foi em julho. Daí para cá, eu e o Vasco íamos falando com muita regularidade e, sempre que lhe perguntava como estava a correr, ele descansava-me dizendo não podia ter encontrado melhor colaborador: dedicado, esforçado e profissional. “Não te preocupes, continuo 100% satisfeito, Marta!”.

Foi assim que o José saiu da rua e foi assim que a vida dele se começou a endireitar.

Naquele dia em que os apresentei, pedi ao José que me desse o seu número do telemóvel. Como não o sabia de cor, tirou um papel do bolso onde o tinha escrito e, para o conseguir ler, aproximou-o demasiado dos olhos. Percebi que algo de errado se passava e alertei o Vasco: “Assim que conseguirmos, temos que perceber se tem falta de vista.”

Há uns dias, o José deixou-se levar, finalmente, ao médico para fazer exames e sim, tinha falta de vista. A receita acusava, aliás, muita falta de vista. Próximo passo? Arranjar-lhe uns óculos para voltar a ver como deve de ser.

Mais uma vez recorri aos meus contactos e lembrei-me de outro amigo especial, também de há muitos anos, o Nuno, que já tinha respondido ao meu apelo uns dias antes para arranjar roupa ao José. Ele, a Deolinda e o Diogo, estes últimos amigos e colegas de trabalho que, tendo sabido da história, não quiseram ficar de fora e fizeram questão de ajudar a pôr nos eixos a vida de alguém que precisava e, acima de tudo, parecia querer.

Ontem o Nuno enviou-me uma mensagem a dizer “Os óculos estão prontos e pagos. São oferta do Grupo Olhos nos Olhos, loja de Telheiras”, empresa do Fernando Tomaz, sócio-gerente e Optometrista, que “é um dos melhores seres humanos que conheço”. Ele, o Cândido Ramos e o João Martins, também Optometristas e colaboradores do Grupo, que receberam o José de braços abertos no dia de escolher as armações. E acrescentou “Só têm um pedido em troca: que o José seja feliz com os óculos novos.”

Engoli em seco. Agradeci. Liguei ao Vasco, dei-lhe a novidade. “Vou pôr-te em alta voz, o José está aqui ao meu lado, dá-lhe tu a notícia”. E foi-me dado esse privilégio. Do outro lado, primeiro houve silêncio, depois um “obrigado” mais uma vez carregado de humildade. Contou-me o Vasco que, depois disto, o José se agarrou a ele a chorar, de felicidade.

Hoje o José foi buscar os óculos. Ligou-me logo a seguir, mais uma vez para agradecer, e para me dizer que o fim de semana ia ser passado a ver o que há anos não via e tinha vergonha de confessar. 
As cores das flores, o mar. Tudo o que o rodeia. E a ele próprio.

O José voltou a ver como merece. O José voltou a ver e, devagarinho, vai voltando a sorrir.

E eu deito-me todos os dias com a certeza de que a vida só vale a pena quando nos rodeamos de boas pessoas, e que a minha está cheiinha delas.

Ao Vasco, ao Nuno, ao Fernando, ao Cândido, ao João, à Deolinda e ao Diogo: obrigada por estarem atentos e obrigada por estarem por perto.

Ao José, deixo-lhe a mesma mensagem que lhe deixei quando falámos: que ele já não está sozinho.




3 de outubro de 2017

O Rei dos Bolos

Passou por mim de manhã, mais uma vez com o já habitual “há bola, há pão com chouriço, há merenda”. Sempre demasiado carregado, sempre demasiado vestido, sempre vestido de preto.

Disse-me adeus de perto do mar, que a areia ali está mais dura e custa menos andar em cima dela.

Conhece-me desde miúda. E sempre daquela praia.

Depois seguiu o seu caminho, porque tinha que conseguir despachar tudo o que levava. “O negócio anda mal, sabe?”.

O dia avançou, ainda o vi passar para cima e para baixo mais algumas vezes.

Quando me preparava para sair da praia oiço um “menina Martaaaaa?” perto de mim. Reconheci-lhe a voz, olhei para trás e vi-o a aproximar-se. Ri-me e pensei “pronto, lá vem o Sr. Zé dar-me bolas de Berlim e chupa-chupas para os miúdos”. E deu. Mas depois levou a mão à mala e tirou de lá o meu livro.


Sem esperar, respondi com um sorriso envergonhado. “Oh Sr. Zé, que querido…! Dê cá para eu lhe escrever uma dedicatória”.

“Pedi a uma cliente ali da praia ao lado que a conhece para me comprar…”, respondeu-me feliz.

Passou-mo para a mão e, quando me preparava para escrever, disse em voz alta, “Ora bem, Caro Sr. Zé…”. Nesta altura ele interrompeu-me com um “Não, ponha Caro Rei dos Bolos…”.

Soltei uma gargalhada e escrevi. Quando terminei li-lhe a dedicatória: “Caro Rei dos Bolos, espero que encontre sempre o caminho para Ser Feliz e que nunca se esqueça que essa é sempre uma escolha sua. Com beijinho da Marta.”

Olhei para cima, para ele, que lá estava. Como sempre demasiado carregado, como sempre demasiado vestido, como sempre de preto, mas desta vez, a chorar. Tentou disfarçar, agradeceu, guardou o livro, e seguiu caminho.

Não foram raras as vezes que, debaixo de um sol que torra, pensei na vida difícil daquele homem. Enquanto uns aproveitam o dia de praia e se divertem, o Sr. Zé, o Rei dos Bolos, faz quilómetros para lá e para cá, sempre com a mesma cantilena na boca “há bola, há pão com chouriço, há merenda”. E agora também há um livro naquela sacola, que ele mostra a quem, pelo meio de um troco de um bolo, lhe dá 2 dedos de conversa.

Aconteceu hoje. Só que, sem ele saber, desta vez quem o ouvia também me conhecia desde pequena. Pediu-lhe para lhe tirar uma fotografia e enviou-ma. Fez-me o dia. Que, antes disto, tinha sido focado apenas em trabalho e sem tempo para me lembrar que há mais do que contactos, textos para rever e estratégias para definir. Muito mais.

Ser Feliz é, Mesmo, uma Escolha.


2 de setembro de 2017

Por falar em discriminação

“Peço desculpa, mas só a podemos levar ao banho até às 11h30”, ordens da Polícia Marítima, acrescentou.

Encolheu os ombros, como quem me quer dizer que não concorda, mas pediu-me para perceber que não podia ir contra as regras. “Depois chateiam-me a cabeça, como já aconteceu, quando me viram dentro de água depois dessa hora…”

Naquela praia há 4 Nadadores-Salvadores. Almoçam entre as 11h30 e as 13h30, aos pares. E, durante essas 2 horas, os banhistas com mobilidade reduzida que dependem da ajuda deles para poderem ir para dentro de água, aguentam-se à bronca (e ao sol) e esperam. “Eles dizem que se estivermos focados em vocês, não damos atenção a mais ninguém.” Solução? Simples: deixar-nos à torra durante as horas de maior calor, enquanto todos os outros se movimentam como, quando e se quiserem. É justo.

As minhas entranhas – sensíveis à ignorância humana, como é sabido – deram 32 voltas cá dentro. Tentei não perder o tino e descambar numa belíssima peixeirada na tão bem frequentada praia de Vilamoura. E consegui, porque sabia que aqueles miúdos pouca ou nenhuma responsabilidade tinham.

Com jeito, lá consegui tomar o meu último banho entre as 11h30 e as 12h, e ainda com mais jeito, lá consegui "furar as regras" e que um tiralô que estava há 1 ano parado em frente à porta da enfermaria, sem nunca ter sido usado (!!!), me servisse de “espreguiçadeira” e me permitisse ficar sentada nele e à beira mar.


Até a história deste tiralô é curiosa. A praia tem um que é utilizado diariamente para levar até ao mar os banhistas com mobilidade reduzida que a frequentam. Está todo estragado, devido ao uso e, acima de tudo, à falta de manutenção. E depois tem outro, o tal que estava parado à porta da enfermaria, disseram-me que desde que foi entregue pela Secretaria de Estado da Inclusão à praia, em 2016, como prémio de Praia Mais Acessível. Quando perguntei a razão, disseram-me que aquele não era próprio para ir ao mar. Expliquei-lhes que estavam enganados, que era diferente do outro mas que também podia molhar-se. De nada serviu, mas lá consegui que me deixassem – pelo menos – utilizá-lo para poder estar à beira mar, onde sempre corria uma brisa mais fresca do que aquela que se fazia sentir lá em cima, nos chapéus que nos destinam, logo na entrada da praia. Que já agora são 3, seguidinhos. Ou seja, se vão 4 pessoas com necessidades especiais para a praia, 1 tem que se ir embora porque já não tem lugar… e as outras 3 ficam todas juntinhas. Gosto tanto disto.

Já agora, também estes chapéus estão mal posicionados. O requisito “de cumprimento obrigatório” para ser “Praia Acessível” é, e passo a citar o que vem no Programa, “que a mesma tenha uma rede de percursos pedonais acessíveis na praia, totalmente livre de obstáculos e de interrupções, que incluirá passadeiras no areal, sempre que este exista, e, nos restantes casos, um percurso pavimentado, firme e contínuo.(…) Esta rede de percursos acessíveis conduzirá necessariamente à zona de banhos de sol (chapéus de sol, toldos, barracas) e o mais próximo possível da água.” Meus senhores, à entrada da praia não é “o mais próximo do mar possível”. É exatamente o oposto. Pior que isto só se for no parque de estacionamento! 

Durante os meus dias de férias a sul, safou-me o facto de só ir à praia de manhã, reservando a tarde para piscina, e a simpatia dos Nadadores-Salvadores, que me ajudaram sempre que pedi. Agradeci-lhes os banhos seguidos, mas não consigo ficar satisfeita com as soluções que o Estado encontrou para tornar a minha ida à praia mais inclusiva.

De há uns anos para cá tem havido um esforço para dignificar a coisa, mas sem resultados claros, serve de pouco. E não, não esperem que eu diga “pelo menos já há alguma coisa feita”, como já ouvi de pessoas que, como eu, têm este tipo de necessidades, que se contentam com praias "quase acessíveis" e outras "quase-quase-e-o-resto-dá-se-um-jeitinho-haja-boa-vontade".

É que entre uma rampa mal feita ou ela nem existir, prefiro que não exista. Primeiro porque uma rampa com a inclinação errada torna-se perigosa para mim, depois porque quem fez uma rampa dessas não a fez a pensar em mim. Fê-la para calar bocas. Mas a minha não calará.


29 de junho de 2017

Para ti, Paula

Os dias que termino na Gare costumam ser uma espécie de injeção de energia que depois uso para aguentar os que se seguem, até voltar a ser 4ª feira, e regressar lá.

Mas ontem não foi assim. Cheguei cedo, encontrei a Mariana pelo caminho e fizemos juntas os últimos metros até ao ponto de encontro habitual.

Assim que me viu, o Chico, arrumador de carros que anda por ali desde que me lembro, veio ter comigo e disse-me “Então, Marta? Não me ligou para a ir ajudar…”. Ele sabe que o percurso por baixo da Gare, depois de sair do centro comercial, é demasiado inclinado, demasiado longo, e que me custa fazê-lo. No dia em que se apercebeu disso, deu-me o seu número de telefone e pediu-me que lhe ligasse antes de o iniciar. “Desço as escadas num instante e vou lá empurrar-lhe a cadeira, na boa, pá.” E sempre que lhe liguei foi. Mas ontem encontrei a Mariana, não liguei ao Chico e ele estranhou.

Quando chegámos, já lá estavam alguns dos nossos amigos de rua. Em fila, para receberem a refeição quente, o pão, a fruta, o bolo e o chá. E, quando é possível, a roupa.

Enquanto esperávamos que chegassem todos os voluntários, fiquei a conversar com os sem-abrigo que estavam mais próximos. E, nisto, “A Paula morreu...”, disse uma senhora que estava no início da fila.

De repente, fiquei só eu e aquela mulher. Como se todos os outros tivessem desaparecido. Nos minutos que se seguiram, tive a sensação de que a ouvia mas apenas ao longe.

 “Morreu? Mas morreu como!?”, perguntei eu, surpreendida.

 “Foi atropelada ali para cima, morreu na hora.”, respondeu.

Ainda a ouvi a dizer que a notícia estava na internet e que se via uma foto com uma ambulância ao lado de um corpo tapado com um lençol branco. Mas naquele momento, a minha cabeça focou-se apenas nas tantas vezes que eu e a Paula tínhamos ficado a conversar, antes ou depois da distribuição de refeições das 4ªs feiras.

Sabia pouco da história dela. Apenas que tinha perto de 45 anos e que se tinha juntado com o Francisco, um sem-abrigo que eu conhecia desde o meu 1º dia na Gare. Com eles sempre, a Funny, uma rafeira grande, de pêlo preto espetado, magrelas mas muito bem tratada. Parecia-me uma cadela feliz. E eu, claro, nunca lhe resistia.

O nosso amor pelos animais unia-nos mais do que outro tema qualquer, por isso era da Funny que falávamos. Contava-me como gostava dela, que era a sua maior companheira. Isto enquanto ela brincava com as garrafas de água, refastelada no pedal da minha cadeira.


Um dia a Paula apareceu com o lábio inchado e todo cozido. Tinha dificuldade em falar e disse-me apenas que tinha caído. Soube ontem que tinha sido por causa de uma bebedeira que tinha apanhado. Mais uma. A última, até àquele dia em que atravessou a estrada num sítio proibido e foi atropelada por um carro que não a viu. “Foi para os Santos, bebeu demais outra vez, passou pelo buraco da rede e decidiu atravessar ali a estrada.” alguém comentou. Já não bebia há meses, achava que estava a conseguir controlar o vício que a andava a matar aos poucos.

Voltei a concentrar-me na voz da colega de rua da Paula. “O Francisco ia com ela e disse-me que as suas últimas palavras foram para mim. Pediu para eu e o meu marido a perdoarmos.”. Não faço ideia do que poderia ter acontecido entre elas, mas perguntei “E perdoou?”. Respondeu-me que sim, e naquela altura senti um nó na garganta. Mas senti também alívio por perceber que o último pedido da Paula tinha sido atendido. 

O Francisco estava do outro lado da rua, com a Funny. Quando me viu aproximou-se, olhou-me nos olhos e disse-me “Morreu…e agora fiquei sozinho. Não tenho nada.”. Agarrou a Funny pela trela e afastou-se para o fim da fila.

Fiquei gelada, sem qualquer capacidade de reação e rezei para que não começasse a chorar.

A rua é muito cruel. As pessoas que vão ali ter connosco estão quase sempre magoadas, revoltadas e desiludidas. Com a vida e, tantas vezes, com elas próprias. Porque falharam e não conseguiram dar a volta. Depois disso, vem a vergonha, o não suportar encarar que estão naquela realidade. E eis que o álcool e a droga se instalam, como forma de esquecer tudo, pelo menos por momentos.

Uns resistem a tudo isto e conseguem regressar à sociedade. Outros nem tentam. Perderam a esperança e deixam-se estar por ali. Na rua, ao frio e ao calor. À espera. E nós, por muito pouco que levemos, nunca lhes faltamos.

Como disse aquela mulher que estava na fila: “Era boa miúda, foi descansar...”. 

(Para ti, Paula)

23 de junho de 2017

Isto é sobre viver

(texto originalmente escrito para o portal O Tuga com o título Ser Feliz é Uma Escolha)
Já contei a minha história muitas vezes e em fóruns diversos. Já tive duas horas para o fazer, já tive menos de uma, já tive dezassete minutos, o recorde foi conta-la em dez. E, todas as vezes que a contei, nunca o consegui fazer sem ser pelo seu lado positivo.
Fiquei de cadeira de rodas com 15 anos. Era uma adolescente feliz, cheia de planos. Tinha tido uma infância fantástica, marcada pela liberdade de quem vivia no centro da cidade, mas que desde muito cedo pôde fugir dela ao fim de semana, para uma casa perto da praia.
Da outra margem do Tejo ficava a Caparica. Era lá que tínhamos a maioria dos nossos amigos. Era lá que saltávamos os muros dos vizinhos para lhes roubar a fruta dos quintais. Era lá que gastávamos os 1000 escudos da semanada em gelados ou campeonatos de matraquilhos e snooker. Era lá que os meus pais nos deixavam passar o dia a andar de bicicleta pelas estradas de terra batida que se enchiam de poças lamacentas quando chovia e era também era lá que nos deixavam ficar na rua até tarde.
Já a semana era passada em Lisboa, entre o Bairro de Alvalade e a Avenida de Roma. Um dia, sozinha em casa, enquanto tomava um duche para mais um dia de escola, senti-me zonza, sentei-me, desmaiei ainda lá dentro e entrei em coma. Quando acordei, 5 horas depois, já no hospital, disse “estou bem mas não sinto as pernas”. Estava paraplégica. Tinha 15 anos e o meu cérebro tinha perdido a capacidade de comandar a parte inferior do meu corpo. Tinha deixado de poder andar.
Marta Guimarães Canário
 Os anos que se seguiram foram de tratamentos, dentro e fora de Portugal. Mas também de regresso à normalidade, numa vida que, a partir daquele momento, passou a ser vivida sentada numa cadeira.
Quando, depois de 4 anos a fazer de tudo para voltar a andar decidi largar os tratamentos (que, já agora, não traziam resultados), era uma jovem de quase 20 anos feliz, que continuava cheia de planos e que se sentia capaz de conquistar o mundo. A cadeira estava lá, mas o único papel que eu deixava que tivesse na minha vida era o secundário: apenas uma forma de me deslocar. E isso era algo que eu devia a mim, claro, mas, acima de tudo, a todos os que me rodearam de carinho e de atenção durante aqueles anos, onde a família teve lugar de destaque. E a vida, essa, seguiu em frente.
Tudo decorria dentro da normalidade, até que, aos 29 anos, depois de sair de um problema simples de vesícula, mas que me tinha feito perder muito peso, fiz uma escara na nádega que infetou e se complicou. As escaras são feridas comuns em pessoas em que a mobilidade está condicionada. E, normalmente, são feridas profundas que demoram algum tempo até fecharem. Já tinha tido várias, tinha conseguido curá-las sempre, mas aquela descontrolou-se e infetou. Fui tratando dela, como já tinha feito com as outras, mas a verdade é que a deixei avançar demais e, quando dei por mim, o meu corpo debatia-se contra uma infeção generalizada – conhecida por septicémia – e já estava em risco de vida.
Voltei ao hospital, mas desta vez para uma experiência mais dolorosa: dois meses de internamento, seguido de outro, e mais um, e mais um. Passei por altos pouco altos, baixos muito baixos, dias em que achei que tinha perdido a esperança de me safar, mas outros em que me agarrei a tudo o que me restava e a todos os que me rodeavam para sobreviver. Quando olhei para trás, tinha passado 6 meses internada e mais de 2 anos entre médicos disto ou daquilo, até me voltar a sentir bem.
Estive presa por um fio mas, mais uma vez, ganhei.
Foi durante este período que percebi que também eu tinha um limite, e que, para não me deparar de novo com ele, tinha que ouvir mais o meu corpo. Prestar-lhe mais atenção.
Desde essa altura, declarei guerra às escaras. Passaram-se 12 anos, e nunca mais tive nenhuma.
O livro “Ser Feliz É Uma Escolha”, que escrevi há 1 ano, conta estas histórias, mas também conta muitas outras. Porque estas duas, por si só, não me definem. A mulher em que me tornei foi influenciada por elas, é certo, mas marcaram-me igualmente os fins de semana na Caparica, as férias grandes passadas entre Magoito e Tomar, os primeiros namorados, as saídas à noite. E, ainda, o nascimento da minha sobrinha, o amor pelos meus cães, o meu trabalho, os meus sonhos, as minhas causas e até os meus medos. Está tudo naquelas páginas.
O “Ser Feliz É Uma Escolha” é a minha vida passada em revista. São 40 anos contados na 1ª pessoa, sem filtros e apenas com um objetivo: mostrar que, apesar dos solavancos, a vida vale cada minuto.

28 de maio de 2017

Fechar os olhos para não ver

Voluntariado. A minha primeira experiência já ia longe, em 1999, altura em que fui desafiada pela minha querida Conceição Zagalo, que pegou em mim e me levou até Palmeira, no norte de Portugal.

Missão: construir habitações para os sem-abrigo da zona. A ideia preocupou-me, confesso. Sabia que o ambiente de obras não era o ideal para a minha cadeira de rodas circular. Mas alguma coisa me fez aceitar o convite.

Entre o dizer que sim e o ir, vivi semanas de desconforto e dei por mim, várias vezes, a perguntar-me “oh maluquinha, mas que raio te deu para aceitares?”

Seriam 3 dias passados longe de quem estava sempre comigo, com um grupo que mal me conhecia. E isto implicava dormir sozinha num quarto de hotel e depositar nas mãos destas pessoas parte da minha intimidade. “Será que te desenrasca sozinha num quarto?”, “E se te dá uma dor de barriga?”, “E chichi, Marta Canário?”. O meu coração batia mais rápido sempre que pensava nisto, por isso evitava fazê-lo.

O dia chegou e a minha irmã levou-me até ao ponto de encontro. Passei a ponte com vontade de chorar e de voltar para trás. Estive mesmo perto, mas não o fiz. À hora, estava à porta da empresa, como todos os outros voluntários. “Seja o que Deus quiser”, pensei.

E a verdade é que fui muito feliz com eles durante os 3 dias em que ajudei a construir aquelas casas, lado a lado com quem nelas ia viver, e em que o meu papel, dada a já conhecida força dos meus braços, foi furar paredes com o berbequim. Pessoas que, sem sequer perceberem, marcaram a minha vida.

Passados 15 anos, decidi ser eu a desafiar-me. O Vasco Noronha, que tinha conhecido em ambiente profissional enquanto assessor de imprensa do ministro da Finanças da altura, colaborava com o Centro de Apoio ao Sem-abrigo (CASA) há alguns anos. Numa das suas idas, juntei-me a ele e ao grupo que, às quartas-feiras à noite, distribuía refeições quentes na Gare do Oriente, a quem dormia no acesso à estação.

Tinha prometido à minha mãe que aquilo seria uma experiência e que só voltaria se sentisse que o meu coração chegava a casa intacto. Não chegou. Chegou dorido por ter visto de perto a tristeza de quem não tem um teto para viver. E ainda mais dorido por ter visto de perto a indiferença de quem passa por eles sem sequer olhar. “É como se fechassem os olhos para não os ver. E assim custa-lhes menos”, pensei. Mas resisti e voltei.

27 de maio de 2017. Ontem fez 3 anos, desde que me deixei embarcar nesta aventura. Pelo caminho passei pelo desgosto de perder o Vasco, que nos morreu de forma inesperada há ano e meio, com uma estúpida falha naquele que era um dos corações mais generosos que conheci até hoje. Na altura pensei em desistir, mas rapidamente senti que, para além de “desistir” ser uma palavra difícil de engolir para mim, também por ele não o poderia fazer. Senti que manter-me ali, seria também uma forma de dar continuidade ao que o Vasquinho, como gostava de lhe chamar, defendia e me ensinou.

3 anos depois, as minhas quartas-feiras terminam melhor se conseguir organizar a agenda “ir à Gare”. Vou quase sempre estoirada e de cabeça cheia do dia de trabalho, mas aqueles momentos funcionam como uma espécie de injeção que me repõe a energia para os dias que se seguem.

O coração, esse, já se habituou mais ao que ali vê, e aprendeu a viver sabendo que deixa lá tudo o que pode para que consiga voltar todas as semanas.










23 de maio de 2017

Urgente: respeito procura-se

Estava um dia de calor intenso. Uma mosca insistia em rasar as nossas cabeças e colar-se às nossas peles. Não nos largava. Estávamos as duas sentadas num dos bancos de cimento que havia no pátio lá do liceu.

Em jeito de brincadeira, saiu-me “a mosca não nos larga porque tu és da cor do cocó”, e desatei-me a rir, achando que tinha dito a melhor piada do mundo, sem pensar que ela poderia ficar magoada com aquilo.

A Raquel olhou para mim e, sem sequer mudar de expressão, levantou a mão e espetou-me uma bofetada digna do nome. Nunca tinha levado uma bofetada. No segundo seguinte estava a pedir-lhe desculpa. Não por medo de levar mais, mas por vergonha daquilo que tinha acabado de dizer.

A Raquel tinha chegado de Angola há alguns anos e vivia num prédio em ruínas, ali para os lados do Campo Grande. Eramos colegas de turma. Não tínhamos mais do que 10 ou 11 anos.

Ainda hoje sinto o coração a ficar mais pequeno, quando penso nisto.


Esta história marcou-me profundamente. Como me marca cada notícia que leio nos jornais ou vejo na televisão sobre este assunto que, quase de um momento para o outro, passou a fazer parte do alinhamento de todos os noticiários.

Naquele tempo, não havia nome para isto. Era apenas a profunda estupidez e maldade de uma pré adolescente parva a funcionar, neste caso, minha. Hoje poderia ser considerado uma espécie de bullying, e muito bem.

Li recentemente que, segundo alguns investigadores, uma em cada cinco crianças em idade escolar está ou esteve envolvida em algum caso de bullying. Uma em cada cinco crianças agride ou é agredida direta ou indiretamente. Contas feitas pelos mesmos investigadores, estamos a falar de quase 250 mil miúdos que maltratam ou são maltratados. 250 mil futuros adultos, entre médicos, engenheiros, eletricistas, mecânicos, veterinários, jornalistas, ou profissionais de quaisquer outras áreas, com potenciais problemas de segurança e autoestima. 250 mil seres humanos com menos capacidade para lutarem por aquilo em que acreditam. Mais grave ainda, por aquilo que os faz felizes. E, se assim for, o que é que lhes restará?

É preciso olhar para o problema do bullying como um dos maiores flagelos da idade jovem. Se olharmos à nossa volta, não há quem não sofra, quem não abuse, ou quem não conheça quem veja e cale. É urgente explicar a estes jovens que o respeito pelo outro é a base de uma sociedade saudável. E que sem esse respeito pelo outro, nunca conseguirão ser, também eles, respeitados. 

Quanto à Raquel, apesar daquele espisódio infeliz, mantivemos a nossa amizade. Mais tarde, com o passar do tempo, perdemo-nos uma da outra. Se um dia a reencontrar volto a pedir-lhe desculpa. 

14 de maio de 2017

F de “Ficar quietinho”

Já muito se escreveu sobre os 3 Fs que levaram Portugal e os Portugueses ao rubro nos últimos dias. Chegou a minha vez.

Entrámos no fim de semana com a vinda do Papa a Fátima, que juntou no santuário muitos milhares de pessoas. 55 países representados, entre velhos e novos, gente com mais ou menos conforto financeiro. Cada um com a sua história, cada um com o seu objetivo, cada um com a sua fé. Enquanto uns pagam promessas, outros fazem-nas, crendo que a vida ficará mais leve.

Do avião saiu mais do que o representante máximo da Igreja Católica. Saiu um homem simples, de sorriso e toque fácil, de afetos. Um homem que une quem acredita e quem não acredita. Um homem que tem o dom de aproximar países. Um homem que faz política sem a fazer. Que diz o que muitos nunca tiveram coragem de dizer. Que toca nas feridas. Um homem bom.




Às 18h15, grande parte dos portugueses vibrou com a vitória do Benfica frente ao clube de Guimarães e, dizem, mais de 200 mil juntaram-se no Marquês de Pombal, para comemorar o “tetra”.

Ao início da noite, famílias inteiras sentaram-se em frente da televisão para assistirem à atuação de Portugal, pela belíssima voz de Salvador Sobral, no Festival da Eurovisão. Há 20 ou 30 anos que ninguém o fazia, tal tem sido a fraca qualidade do que Portugal lá tem levado. “Vergonha alheia”, respondiam quando se lhes perguntava porque não seguiam o programa. “Vergonha alheia” foi também a minha resposta tantas vezes. O “Amar pelos Dois” uniu pais e filhos, avós e netos, Portugueses ou não, na esperança de trazer o caneco para o nosso país. E trouxe.

No dia seguinte, foram outros tantos os que se deslocaram ao Aeroporto de Lisboa para receberem o miúdo em braços, como se de um “Salvador” se tratasse.

Em apenas 3 dias, vimos Portugal a unir-se por 3 causas: Fátima, Futebol e Festival. E foi emocionante, ninguém põe em causa. Mas que tão facilmente se unisse também pela causa dos que vivem na rua, pelos que são vítimas de violência doméstica, pelos que procuram emprego, por todos os que precisam de ajuda para fazerem gritar a sua palavra, e tantas vezes os seus direitos, mais alto.

Porque como já alguém disse - e bem - se o objetivo é ir rápido, devemos ir sozinhos, mas para irmos longe, só acompanhados. Ou, nas palavras do Papa "o todo é superior à parte".





25 de abril de 2017

Voltar onde já fui feliz

Vou à varanda e deixo lá dentro a televisão ligada para ouvir os discursos sobre abril. Há qualquer coisa naquele som de fundo, ouvido ao longe, que me tranquiliza. Como o que vem do rádio.

É assim desde miúda, quando eu e a mana passávamos a tarde de domingo em casa, no nosso quarto, cada uma sentada na sua escrivaninha, a fazer os trabalhos de casa, enquanto a mãe preparava o bolo de laranja para o lanche. Ou quando ouvíamos o relato de um qualquer jogo de futebol com o pai, enquanto encaixávamos as centenas de peças da Lego que, para desespero da mãe, espalhávamos no centro da sala. 

Em casa da avó Olinda era a Renascença. À hora da sesta, deitava-nos em cima da cama dela, tapava-nos com uma manta, sentava-se no sofá ao lado e acompanhava o terço pelo rádio. Sempre lhe gabei a paciência. Ensinou-nos a rezar desde muito cedo mas, a quantidade de “Avés Marias”, “Pais nossos” e “Glórias” que ela rezava ali, eram demasiado para nós. E quando começava, com o “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus Nosso Senhor, dos nossos inimigos. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, Amém”, dávamos por nós a tentar controlar o riso debaixo da manta, porque nos lembrávamos da versão que o nosso pai, ateu convicto, nos ensinara, só para a irritar. “Pelo sinal do Santo Pardal, comi toucinho e não me fez mal, se mais me dessem, mais comia, adeus Senhor Padre, até outro dia.” A desgraçada da D. Olinda subia as paredes, mas não era fácil controlar duas pestes com 8 ou 9 anos.


Estou de volta à varanda e continuo a ouvir, por entre os carros que passam, as palavras que vêm lá de dentro, e que marcam este que é o dia da Liberdade. 

É cedo, já tenho a casa arrumada e deixo-me ficar, sem pressa para nada. A tranquilidade aqui é grande.

Enternece-me a vizinha do prédio ao lado que, na varanda, sentada perto da mãe já velhota, lhe arranja o cabelo. Sempre a achei parecida com a minha avó Olinda. Tal como ela, também é baixa, gorducha, cabelo todo branco, desloca-se devagarinho e apoiada por uma bengala. Imagino que tenha, tal como a avó tinha, as mãos enrugadas, com sinais, arranjadas e, nos dedos, a aliança dela e do marido, juntas.

Vejo-a sempre de bata. A avó também as usava, feitas por si, sempre na velha Singer, que estacionou no fundo da cozinha, junto à janela que dava para as traseiras. Um espaço que recebia toda a luz necessária para ela, que já não via bem, marcar os tecidos que comprava a uma amiga no mercado de Alvalade e fazer as inseparáveis batas. 

Cresci com a televisão ligada. Ou o rádio. É para recordações destas que viajo quando ficam ligados, a fazerem de som de fundo.

E a minha varanda, essa, continua mágica. 

10 de abril de 2017

Sim, eu tenho um anjo da guarda disfarçado de irmã

Engraçado, sempre a tratei por mana, ela sempre me tratou pelo nome. Coisas de irmãs mais novas, temos 18 meses de diferença.

Quando nasci, ainda na maternidade, pregou-se ao meu berço com uma espécie de cola tudo, e não deixou que ninguém se aproximasse.

Mais tarde, mas pouco mais, conta a mãe que, durante um jantar de amigos em casa, foi ao quarto, agarrou-me por baixo dos braços, virou-me para a frente e apareceu no meio da sala comigo ao colo.

Pela idade, entrava nas escolas sempre um ano antes de mim. Popular, preparava-me o terreno. Era a “irmã da Patrícia” e isso dava-me um estatuto superior e uma vantagem à partida.

Tínhamos muitos amigos, uns em comum, outros não, mas eramos a melhor amiga uma da outra. E não por termos os mesmos gostos, porque eramos muito diferentes. Ela, uma desportista. Eu, nem por isso. Saltava ao elástico como ninguém. Eu, “enrolava-me ao elástico”. Ao fim de semana, o nosso pai pegava em nós e levava-nos a ver jogos de futebol entre equipas pequenas, de 3ª divisão, em campos em que a terra era batida e sem bancadas. Ela ia feliz, eu ia porque sim. Vestidas de igual, quase sempre de cores diferentes.

Lá no bairro chamavam-nos as “irmãs Metralha”. Não foram poucas as vezes que os vizinhos se queixaram à mãe, assim que a apanhavam a entrar na rua, ao fim do dia. Ou eram as corridas em casa que rebentavam com os candeeiros do teto da pobre da D. Leonor, ou ideias mais criativas como atar os cintos dos “robes” que a avó Olinda nos dava todos os Natais – que comprava na banca da amiga que tinha no Mercado de Alvalade, para nós, irmãs Metralha, "a Nariguda" -, prendê-los à maçaneta da porta do Sr. Amaro e da D. Susana (2ª direito e 2ª esquerdo, respetivamente), tocar às campaínhas ao mesmo tempo, pisgando-nos de seguida. As portas, claro está, não abriam. E nós delirávamos com o cenário. Ao fim do dia era certinho: queixa à mãe Teresa.

E assim vivemos a infância e a pré-adolescência, sempre à procura de "novas vítimas".


Aos 15 a vida trava a fundo. Sai de pista, bate no raile, amolga-se, mas volta ao sítio. E nós sempre ao lado uma da outra. A partir dali, de duas passámos a uma.

Aos 29, nova travagem da vida. Desta vez, derrapa, capota várias vezes. Não comeu, emagreceu, passou os dias que se seguiram numa espécie de stand by interior, à espera de voltar a poder carregar no play.  Mas nós, sempre ao lado uma da outra. 

Hoje assobio o “nosso assobio”, ela vem à varanda, do outro lado da rua, e eu digo “traz-me o casaco verde e o anel das pedras!”. Ela vai à rua com o Chico, assobia o “nosso assobio”, eu apareço na varanda e fico a vê-los a entrar no pinhal.

O plano é envelhecermos as duas, marretas. Quem sabe em Alvalade. O bairro que nos viu crescer será o que nos verá morrer. Ela velha seca, eu velha gorda, mas felizes. E juntas.

Feliz Dia dos Irmãos, mana. <3


7 de abril de 2017

"Nem o céu será o meu limite!”

(entrevista publicada no site "Onde ir")


Marta Canário tinha 15 anos quando a sua vida mudou drasticamente e um simples duche empurrou-a para uma cadeira de rodas. Em vez de ficar de braços cruzados, deu a volta e da adolescente nasceu uma mulher lindíssima, por dentro e por fora. É assessora de imprensa da Novabase desde 1998 e tem ainda tempo para ajudar pessoas sem-abrigo. Escreveu o livro “Ser feliz é uma escolha” e o Onde Ir escolheu-a para a entrevista que se segue.
Texto Sandra Martins Pereira Fotografia Rodrigo Cabrita

Marta decidi pegar no seu livro e abri-lo ao acaso para ver Onde nos leva. O primeiro capítulo a sair foi o IV “Supera as adversidades (e aprende com elas)”. Toda a história da Marta é uma constante prova de superação, não só nas coisas mais graves, como a septicémia que fala logo no início do capítulo, mas calculo que também no seu dia a dia. Quais as maiores dificuldades que encontra numa simples ida ao cinema, a um restaurante ou espetáculo ou numas férias? O que é preciso alterar na mentalidade das pessoas em relação a pessoas com mobilidade reduzida?
Encontram-se várias, umas mais fáceis de ultrapassar do que outras, mas várias, por todo o lado e para todos os gostos. Portugal está mais sensível ao tema das acessibilidades para pessoas com mobilidade condicionada, mas ainda há muito caminho para percorrer. E a lei não nos ajuda. Apesar do DecretoLei nº163/2006 legislar o tema, este apresenta um problema de base: depois do artigo que obriga os espaços públicos a estarem acessíveis, segue-se outro com as chamadas “exceções”, onde tudo cabe, e passo a citar: “obras desproporcionadamente difíceis, ou que requeiram a aplicação de meios económico-financeiros desproporcionados ou não disponíveis, ou ainda quando afetem sensivelmente o património cultural ou histórico, cujas características morfológicas, arquitetónicas e ambientais se pretende preservar.” Como facilmente se percebe, é muito simples alegar um ou mais destes argumentos e não adaptar ou adequar o espaço.
No meu caso em particular, em que a minha “limitação” é deslocar-me numa cadeira de rodas, preciso de planear as minhas saídas sempre que quero ir a algum lado. Seja em lazer seja em deslocação profissional. E por vezes acontece que não consigo mesmo ir, porque as dificuldades são tantas, que prefiro não arriscar.
Tenho, felizmente, assistido a algumas mudanças de mentalidade nos últimos tempos, nomeadamente ao nível da cidade que me viu nascer, Lisboa, e isso deixa-me muito, muito feliz. Mas merecemos muito mais. Há um longo caminho pela frente, até chegarmos ao nível que considero satisfatório e até justo. Quero poder ir a qualquer restaurante e não me preocupar como vou entrar, se tem casa de banho adaptada. Quero poder andar de transportes públicos sem ter que avisar a empresa de transportes que estou a chegar, quero poder passear na minha cidade e no meu país sem correr o risco de empancar numa pedra e cair, ou de ser confrontada com um degrau e não poder avançar mais.
É urgente abrirmos as nossas cabeças. Defendo a teoria do “para todos”. Até porque todos, sem exceção, passamos por um episódio de mobilidade condicionada ou reduzida ao longo da nossa vida. Ou porque torcemos um pé, ou porque ficamos grávidas, ou porque precisamos de passear o carrinho do nosso bebé, ou porque partimos uma perna, ou porque envelhecemos. Por isso, devemos pensar num mundo universal. Afinal, na grande maioria dos casos, o que dá para mim, dá para todos.
O que faz para superar essas adversidades? Ou seja, como é que dá a “volta ao texto”?
Com uma enorme capacidade de planeamento, que aprendi a ter. Com a ajuda da família e dos amigos, que nunca me falham. E com uma paciência infinita para não me passar sempre que me deparo com alguma destas situações. Naturalmente que já tenho muita experiência no assunto e consigo rapidamente perceber onde posso e onde não posso ir. Isso ajuda a não passar a vida a bater de frente contra essas situações.
Depois também tem a ver com o meu feitio. Não sou de ficar agarrada ao que não consigo fazer. Sigo em frente, parto para outra.
A Marta trabalha como assessora da Novabase já há alguns anos e o facto de andar numa cadeira de rodas nunca a impediu de efetuar um bom trabalho. Hoje em dia acha que as empresas estão mais abertas a darem também hipóteses a pessoas com algum tipo de deficiência?
Entrei na Novabase em 1998, com 23 anos, para ajudar a empresa a preparar a entrada em Bolsa, no que dizia respeito à relação com a imprensa, que ia começar a ser necessário desenvolver. Não percebia nada de tecnologia – a Novabase é uma consultora com base tecnológica – mas expliquei que ia conseguir perceber do negócio rapidamente e que o explicaria com alguma facilidade aos jornalistas. Acreditaram em mim e lá estou, até hoje, 18 anos depois. O facto de eu estar de cadeira de rodas nunca foi sequer um tema para a Novabase. Porque também não o é para mim. Já mudámos de instalações 4 ou 5 vezes, e tiveram sempre a preocupação de garantir que eu tinha as condições necessárias para trabalhar e para me sentir parte daquele todo. Foi assim quando éramos 200, é assim hoje, que já somos mais de 2000 e estamos espalhados pelo mundo.
A Novabase teve a capacidade de ver para além da minha cadeira. E eu tenho conseguido provar que valho a pena. Porque dou sempre o meu melhor, todos os dias. E porque a Novabase me recompensa com reconhecimento e novos desafios. No fundo, é como numa relação entre duas pessoas. A nossa é uma relação saudável, em que ambas as partes são felizes. E, enquanto assim for, lá me terão.
Mas também tenho consciência de que me movo num mundo esclarecido, de gente com mente aberta. Infelizmente nem todos pensam assim e sinto que há ainda muito preconceito em apostar em pessoas com algum tipo de limitação. Há, também aqui, um longo caminho para trilhar. Talvez com a exposição de exemplos como o meu, e há muitos mais, outras portas se abram e outras empresas percebam que há limitações que em nada interferem com um excelente desempenho profissional. Para além disso, acho que as pessoas com limitações têm características únicas. São muito determinadas, focadas, orientadas à solução – fartos de problemas estamos nós! – e cheias de vontade de mostrar que conseguimos superar qualquer obstáculo. Isto, também em ambiente profissional, é fantástico!
Se nada disto funcionar, venham de lá as quotas, como em alguns países, em que por x pessoas ditas “normais” é obrigatório x com algum tipo de limitação.
Vou abrir o livro novamente: Página 109 “Perguntas difíceis, respostas verdadeiras”. O lançamento deste seu livro “Ser feliz é uma escolha” tem sido pretexto para várias entrevistas em diversos meios de Comunicação Social. Cada vez que recorda todos os episódios que passou é-lhe difícil ou pelo contrário aproveita o seu exemplo para dar força aos outros? Dá sempre respostas verdadeiras ou faz alguns floreados para o cenário não parecer tão mau?
Tudo pelo qual passei moldou-me. Tornou-me um bocadinho mais completa. Mais humana até. Percebi que não sou invencível. Sei os meus limites. Mas também sei que sou resistente. Sei que ando por cá com uma missão: mostrar que podemos ser felizes, mesmo que a vida nos passe algumas rasteiras. Aprendi com a própria pele que um dos segredos para isto tudo é aceitarmos o que a vida nos dá e aprender a fazer o nosso melhor com o que existe. Por isso, não me custa nada falar de tudo pelo qual passei. São temas resolvidos e bem-vindos. São situações que, apesar de difíceis, me ajudaram a crescer, a ser melhor. E que, quando abertas a todos, ajudam os outros a serem mais felizes e a verem a vida de outra forma. A darem valor às pequenas coisas, aos pequenos momentos. O que me deixa imensamente feliz. É uma responsabilidade gigante, mas o retorno é muito maior.
Quanto aos floreados, quem me conhece sabe que não os faço. A parte crua e dura da vida ensina-nos muito mais que a bem cozinhada e fácil de roer.
Nesta página do livro conta que foi a uma escola complicada falar com miúdos complicados. Intimidou-a? Qual foi a pergunta que a incomodou mais? De que forma pensa que o seu testemunho nessa escola ajudou esses adolescentes?
Nesse dia o objetivo era ir contar a minha história a miúdos adolescentes. Parecia simples. A sala estava cheia porque eles eram obrigados a assistir à palestra. Tinham que preencher aquela hora ali. Contei a história da paraplegia e, mais tarde, da septicémia. Penso que gostaram de ouvir e que os ajudei a perceber que podemos ser felizes mesmo assim.
A certa altura, uma das miúdas da fila da frente dispara uma pergunta mais íntima: “Se não sente, como é que se retira prazer de uma relação sexual?”
Confesso que engoli em seco e parei por segundos. A professora que me tinha convidado ficou da cor de um tomate e atravessou-se, pedindo para passar para a pergunta seguinte. Mas eu olhei para a miúda e disse-lhe “se é isto que queres saber, se é esta a tua curiosidade, vamos a isso.”
E tentei explicar-lhe que o nosso corpo é uma caixinha de surpresas e que devemos investir algum tempo a conhecê-las porque sairíamos dessa viagem muito surpreendidos com as respostas que ele nos dá. Que quando nos entregamos – e muitos daqueles miúdos estavam precisamente nesta fase da vida – devemos fazê-lo a quem gostamos muito e que nos respeite como somos. E terminei com a pergunta “gostas quando o teu namorado te dá um bom beijo no pescoço ou na orelha?”. Ela respondeu “gosto muito”, e riu-se, envergonhada. Aliás, riram-se todos e, quando demos por isso, estávamos ali há mais de 2h.
Respondendo à pergunta, tenho a certeza de que eles perceberam a mensagem e que vão olhar para a deficiência com menos preconceito, também a esse nível.
Nova abertura de livro: página 49 “Aceitar o diagnóstico, desistir dos tratamentos”. Não me parece que desistir seja a sua palavra preferida, no entanto às vezes é necessário saber aceitar as coisas tal como elas são. É difícil tomar estas decisões? Como sabemos que está na altura de aceitar? Que conselho pode dar a outras pessoas?
Naquela altura eu já tinha tido o acidente há cerca de 3 anos. Fazia fisioterapia todos os dias, massagens, acupunctura, homeopatia. Tinha ido a Londres, aos melhores especialistas. Mas a minha sensibilidade nas pernas continuava na mesma, sem alterações. O tempo que eu passava nestes tratamentos, era tempo que eu não passava com amigos, colegas, a divertir-me. Por isso, a certa altura, decidi parar com eles para me dedicar a viver ainda mais. Prometi estar atenta aos avanços da medicina, mas precisava de imprimir normalidade ao meu dia a dia. Tinha 18 ou 19 anos e queria ser como os outros.
Olhei para trás e era muito feliz, mesmo tendo ficado de cadeira de rodas. Era feliz assim, sentada. Aquele foi o meu momento, fechar um ciclo e abrir outro. Mantive-me na faculdade, anos depois fui trabalhar para a Novabase, namorei muito, saí à noite, diverti-me, fiz tudo a que tinha direito, mesmo assim, sentada. A vida continuou. E continua. Por muitos e bons anos, espero!
Página 138 “Naquele tempo, as férias de verão duravam meses…”
Vou seguindo a sua página do Facebook e vejo-a sempre bem-disposta e com um grande bronzeado. Penso que foi o ano passado que me deliciei com uma história de uma senhora de idade a quem emprestou o seu tiralô (carrinho anfíbio que nos leva para dentro de água) para que a mesma pudesse entrar no mar. É muito importante para si continuar a fazer as coisas mais naturais da vida, como ir à praia, entrar no mar, estar com os amigos? E como foi proporcionar essa mesma sensação a uma pessoa que há tantos anos não tinha esse prazer?
A minha vida é igual à de toda a gente, com pequenas adaptações, apenas isso. Claro que há coisas que não posso fazer, como correr, andar de bicicleta, jogar voleibol, que sempre gostei. mas há tanta coisa boa que me resta que, vendo bem, estas nem me fazem falta!
Banho de mar. Deixei de ir a certa altura, ou porque estava muito magra e não me queria despir, ou porque tinha feridas (escaras) e não as podia molhar, ou porque estava acima do peso e tinha vergonha. Ia para a praia com os meus amigos mas ficava na areia, a torrar ao sol, sempre perto deles. Não ia ao banho. Até ao dia em que fiz umas férias no Algarve com a minha família – mãe, irmã e sobrinha. Naquela manhã fomos até a uma praia e, assim que cheguei, percebi que era uma praia acessível, com passadiço até à zona dos chapéus, tiralô, etc. Quando cheguei lá abaixo percebi que havia várias pessoas como eu, e que elas iam ao banho com a ajuda dos monitores. O sol era abrasador, o mar calmo e quente, ninguém me conhecia, e estava com quem mais amo para me ajudarem a ultrapassar aquilo. E fui. Vinte anos depois, voltei a nadar em água salgada. Foi inesquecível. De tal forma, que hoje em dia tenho um tiralô na praia que frequento perto da minha casa – oferecido pelos donos do bar no dia dos meus anos – e não dispenso um bom banho de mar ou uma boa conversa à beira mar com os pés dentro de água. Nunca mais me vou privar disto.
Esse episódio da senhora de idade aconteceu no último verão. Nesse dia eu não ia à praia, e uma amiga ligou-me a perguntar se eu lhe emprestava o tiralô para levar a avó, uma senhora com 88 anos, ao mar, onde tinha deixado de ir há mais de 20. A D. Filomena. Revi ali a minha história e disse prontamente que sim. Minutos depois, a minha amiga enviou-me uma fotografia da avó dentro de água, sentada no tiralô, com os netos à volta e um sorriso enorme no rosto. Fiquei de coração cheio, por ter contribuído para aquele momento de felicidade. A D. Filomena faleceu há poucos meses, e sentir que ajudei a cumprir este seu sonho, dá-me uma sensação de felicidade enorme. E de gratidão, por um dia me terem oferecido aquele carrinho que tão feliz me faz a mim, e que tão feliz fez a D. Filomena e a sua família.
Que diferenças encontra entre o estrangeiro e Portugal em termos de facilidades nos hotéis e em outros empreendimentos turísticos por forma a facultar uma vida “normal” a pessoas com mobilidade reduzida? A Marta tem postado no Facebook várias fotografias de piscinas adaptadas. É um recado?
Sinto que ainda há muita gente para sensibilizar. No outro dia tinha uma reunião até muito tarde, e outra no dia seguinte, muito cedo. Por isso decidi ficar a dormir no hotel ao lado da minha empresa, já que não justificava ir a casa para dormir e tomar banho – não vivo perto do escritório – e voltar. Liguei para o hotel, perguntei se tinham um quarto adaptado, garantiram-me que sim. Mas, como já conheço os truques e sei que há muita falta de conhecimento, pedi para me descreverem o quarto e o wc e percebi que não tinham cadeira para me ajudar na banheira. Perguntei se havia espaço para comprarem uma, que serviria para mim, mas também para os próximos clientes. Não foi fácil, mas lá compraram. E ela já me serviu mais 1 ou 2 vezes, em que tive que lá ficar. Há uns anos, fui a Bruxelas e fiquei num dos melhores hotéis da cidade, num quarto supostamente adaptado. Quando lá cheguei percebi que, para eles, um quarto adaptado era um quarto com 50 metros quadrados. Expliquei que preciso de pouco espaço, mas pensado para mim. Lá compraram uma cadeira de banho, mas também a custo. Para compensar, uma história feliz: há 2 anos estive em Madrid em férias e desloquei-me sempre para o centro da cidade de comboio, sem problemas de acesso e com direito a wc dentro da carruagem que, mesmo sem necessidade, decidi usar porque nunca tinha visto!
Não me atrevo a fazer viagens de avião de longo curso porque ainda não percebi como resolvem se eu precisar de ir à casa de banho a meio da viagem. Fico-me por locais mais próximos.
Todos os anos alugo casas de férias no Algarve e também tenho sempre problemas em encontrar uma com acessos para mim e dentro do que quero gastar. Mas, neste caso, como vou em família, acabo por ter ajuda, se necessário. Mas não devia ser assim. É uma vergonha.
Abri de novo ao acaso: Capítulo IX “Sê o melhor que conseguires”. Já disse em várias entrevistas que está rodeada de mulheres e dedica mesmo este livro a elas – a sua mãe, irmã e sobrinha – como se explica a uma criança que não podemos andar?
A Carlota nunca me conheceu de outra forma, pelo que para ela sempre foi normal ver-me na cadeira, a passar para a cama, a tomar banho sentada, a ser ajudada por terceiros. Claro que ela foi crescendo e percebendo que a tia era, de alguma forma, diferente dos outros. Mas como também sempre cresceu perto de uma pessoa que, mesmo de cadeira, faz uma vida normal, adaptada mas normal, nunca foi para ela um problema. Muitas vezes até me disse que me preferia assim do que se andasse. Ainda mal articulava o discurso, e já me dizia estas coisas fantásticas.
Sinto que é uma miúda mais atenta e sensível, por ter crescido perto de mim. Gosta de ajudar os outros, defender os que, por uma razão ou por outra, são mais frágeis aos olhos da sociedade. Um dia, no infantário, perante um colega que se deslocava de cadeira de rodas e que não queria, por isso, entrar numa atividade de grupo, levantou-se, pôs a mão na cintura e disse: “tens que fazer. Olha que eu tenho uma tia lá em casa que faz tudo! Até se pinta!” Acho esta história deliciosa porque para ela, eu fazer tudo não é trabalhar, dar-lhe banho, fazer o jantar, arrumar a casa. É pintar-me…!
A Marta, apesar da sua mobilidade reduzida faz muito mais do que muitas pessoas que têm os movimentos livres. Uma dessas coisas é ajudar pessoas sem-abrigo, dando-lhes comer. A frase “Sê o melhor que conseguires” aplica-se?
Sou voluntária do CASA – Centro de Apoio ao Sem-abrigo há 3 ou 4 anos. Todas as 4ªas feiras me junto a um grupo de malta que, depois de um dia de trabalho, vai até à Gare do Oriente depois do jantar, para distribuir uma refeição quente, um pão, um bolo, um sumo e roupa a quem ali perto passa a noite.
A causa dos Sem-abrigo toca-me especialmente. A falta de dignidade com que aquela gente é tratada pela sociedade, incomoda-me. Julgamos demais, sabe? Há ali pessoas que precisam de nós, ponto final parágrafo. Se erraram na vida ou não, pouco me interessa. São seres humanos que precisam de alguém que lhes dê um prato de comida e, tantas vezes, que os oiça. Garanto-lhe que não está ali ninguém por gozo. Todos os dias que lá vou aprendo mais um bocadinho sobre a vida. Sinto que a nossa presença os conforta. E saio de lá com mais energia do que a que levo comigo. Costumo dizer que é a melhor parte do meu dia.
Se todos dessem um bocadinho de si, a esta ou a outra causa, o mundo era muito mais equilibrado e havia mais gente feliz.
Finalmente e para terminarmos, impõe-se a pergunta: Ser feliz é uma escolha sua. Onde pensa que a levará?
Todos dias, desde que acordamos até que nos deitamos, fazemos escolhas. O que vestir, o que comer, o que fazer durante o dia, como o fazer, etc. Mas as nossas escolhas passam também por: com que cara saio de casa, bem ou maldisposta, com mais ou menos vontade, mais ou menos motivada para o dia que me espera…Enfim, escolher é algo que nos acompanha todos os dias da nossa vida.
A vida ensinou-me a tentar fazer sempre as escolhas que me levem ao principal objetivo que tenho na vida: ser feliz. E tenho conseguido.
Tudo pelo qual tenho passado, principalmente os momentos mais duros, serviu para eu constatar que o meu corpo segue uma espécie de padrão sempre que entra em modo de sobrevivência. Um bocadinho como os smartphones quando entram em modo de economia de energia, e passam para segundo plano uma série de tarefas/aplicações/funções, assim faço eu. Desligo o que não interessa e foco toda a minha energia a executar tarefas essenciais à minha “sobrevivência”: ultrapassar a situação, sair dela. Umas vezes conseguimos sozinhos, noutras precisamos de ajuda. Devemos pedi-la se necessário. Sem vergonha.
Mas o segredo é este: quando somos confrontados com algum tipo de problema, há que aceitar que eles existem, não lhes podemos fugir, devemos trazer para dentro do barco, o mais rapidamente possível, o lado racional. Como eu costumo dizer, juntar ao word da vida, o excel, muito mais frio, mais analítico. Definir um plano de ataque, um caminho para encontrar a solução: ultrapassar a situação. Focar em ser feliz. Daí o título do meu livro “Ser Feliz é Uma Escolha”.
Tenho feito esta escolha todos os dias. E tenho a certeza que, se continuar a fazê-la, vou chegar longe. Aliás, acho que nem o céu será o meu limite!