Vinha de um problema na vesícula que
me tinha emagrecido até aos 40 quilos. Não era bonito de se ver. Toda aquela
magreza trazia para a vista um esqueleto de metro e setenta e dois coberto de
pele. E pouco mais que isso.
Precisamente por causa dessa magreza,
tinha feito uma ferida de pressão na bochecha do rabo, lado direito. Estávamos no
final de 2005.
Pernas em forma de palito, maminhas
nem vê-las, braços fininhos, dedos de pele e osso. A cara era encovada, os
dentes e os olhos pareciam maiores. Mas mantinha um sorriso.
Até a roupa era tamanho S e com recurso a alfinete de dama para prender atrás das costas o tecido
que sobrava das camisolas.
Mas, mesmo assim, era neste estado
que todos os dias me arranjava e me punha a caminho de mais 9 horas de trabalho
em Lisboa. 9 horas que, juntando às outras que começam a contar desde que
acordava até que me deitava, chegavam a 16 ou 17 em cima da cadeira. O mesmo
será dizer, em cima da ferida. Non stop.
Um dia ela queixou-se e infetou. Sempre
acompanhada por uma médica, tratei-a como podia. Mas sem pânicos. Afinal
não era a primeira nem seria a última escara da minha vida. Alguém na minha
condição já sabe que, de tempos a tempos, aparece uma.
Houve alturas em que
melhorou, mas outras em que piorou. E assim andou durante uns meses. Eu, sempre magra,
fazia febre de vez em quando. Tomava antibiótico, melhorava, parava de tomar,
voltava a febre. Recomeçava tudo.
Lembro-me que passei bem o Natal.
Não havia sinais de infeção há algum tempo e andava a comer bem há umas semanas.
Mas a febre voltou em meados de janeiro.
Cansadas daquele sobe e desce
infernal, fomos ao hospital perceber se havia mais alguma coisa a fazer. Havia.
Havia mas demorou 9 meses até ficar resolvido. Só regressei ao trabalho em setembro,
depois de uma septicémia em último grau. Depois de me desviar de mais um encontrão
da vida.
Já chegava. A aquela experiência tinha sido avassaladora para toda a família. Foi
tempo de fazer uma análise fria do que me poderia acontecer caso continuasse
com o mesmo tipo de vida que tinha tido até ali.
Sabia que o pior tinha passado, mas
também sabia que ainda havia um longo caminho a percorrer até recuperar a 100%. E sabia que a minha saúde, no futuro, só dependeria de mim. Se quisesse continuar por
cá, teria que ter, finalmente, juízo.
Uma das primeiras decisões que tomei
foi partilhar esta preocupação com a empresa. Expliquei que gostaria de
continuar a trabalhar com eles mas que teria que intervalar as minhas idas ao escritório
com alguns dias de trabalho de casa.
Todos aceitaram esta condição e assim
começou uma nova era no meu trabalho. 2 vezes por semana na empresa para
entrevistas, reuniões, idas a eventos, o que fosse preciso, 3 de casa. Horário
de trabalho: o normal. Que, para quem me conhece, é quase sempre on.
Há quem não consiga habituar-se a
este tipo de trabalho. Atacam o frigorífico, trabalham fora de horas, não
resistem a uma sesta depois de almoço... Eu habituei-me. Aliás, queria muito mostrar
que era merecedora da confiança que tinham depositado em mim e que ia conseguir
cumprir todos os meus objetivos. Queria provar que estar em casa ou no
escritório, era igual para a empresa. E melhor para mim.
Comprovou-se depois que era melhor
para todos. Estar em casa, mais sossegada, era sinónimo de estar também mais
concentrada. Mais focada. Raramente cheguei ao fim do dia com tarefas a meio. Mas o que interessava mesmo era que estar em casa libertava-me o corpo.
E depois havia sempre o outro lado. Trabalhar remotamente, deu-me a oportunidade de ver crescer a Carlota e de poder fazer parte
dos fins de tarde em que lhe dava banho, lhe preparava o jantar e brincava com
ela. De repente havia tempo para tudo.
Nos dias em que ia à empresa, sempre
que tinha um break nos compromissos, divertia-me a circular pelos corredores, a
meter-me com as pessoas, a angariar informações necessárias para o meu trabalho
ou dia a dia através de conversas informais. Porque quem está fisicamente na
empresa, faz isto de forma tão natural que nem dá conta de como estes momentos
são tão importantes.
Já passaram quase 9 anos. Continuo no
mesmo sistema. Graças a esta forma de trabalhar consegui recuperar a parte física
e equilibrar a parte psicológica, que na altura da septicémia levou um grande
abanão.
Hoje acordo cedo, tomo o pequeno-almoço,
arranjo-me, visto uma roupa confortável e ligo o computador. Onde fico sempre,
religiosamente, até à hora de almoço. Não aceito convites para almoçar quando
trabalho de casa. Não me quero dispersar. Prefiro comer qualquer coisa rápida e
voltar ao trabalho, direto, até às 18h30/19h. Durante o dia, não são raras as vezes
que uso o skype para falar com a minha agência em Moçambique. Ou que faço uma
reunião com direito a videoconferência com a minha equipa que está no
escritório em Lisboa.
Tudo com uma concentração
quase irritante. Mas, no fim da tarde, paro tudo para receber a Carlota, já crescida
mas ainda a requerer atenção – vá, mesmo que não precise eu gosto de parar para
a receber -, e sempre que é necessário adianto o jantar. O que adoro fazer.
Pelas 21h volto ao computador e
despacho trabalho que tenha ficado pelo caminho. Ou já nem volto. Faço como me
apetecer. Mas, regra geral, apetece. Porque o trabalho assim não é um fardo. E
não é um fardo porque não me rouba tempo que eu quero ter para outras coisas.
Cabe tudo da minha vida. Pessoal e profissional.
Sinto verdadeiramente que ganhei
muito com este sistema. E a verdade é que, se nunca tivesse tido um problema de
saúde como tive, ainda hoje lutava contra o relógio como tantas colegas fazem
para conseguir arranjar espaço para tudo. E talvez nunca conseguisse chegar lá.
Como, infelizmente, elas não chegam.
Dizem que Aquele lá em cima escreve direito por linhas
tortas. Eu sempre acreditei nisso.