Acordei e fui tomar o pequeno-almoço na varanda. Como, aliás, faço sempre
que o tempo o permite.
É dali que o costumo observar. Por entre os carros, em cima das árvores, esparramado
no quente do alcatrão da estrada. Ou perto das taças que estão no
canto do estacionamento, que os vizinhos enchem todos os dias com restos de
comida ou de ração.
Mas hoje, quando acordei, não foi assim.
A rua estava em silêncio. Ao longe vi a Carla, vizinha do rés-do-chão do prédio
do lado, à procura de alguma coisa ou de alguém. A acompanhá-la estava o Kiko,
o seu gato, amarelo e gordo, que a seguia com uma fidelidade e dependência mais
próprias de um cão.
Passou pelo meio dos carros, espreitou por baixo de cada um, olhou por entre
os arbustos e por trás dos muros. Nada.
Não sabíamos do gato coxo. Tinha desaparecido sem deixar rasto.
Nos últimos anos, era por aqui que andava. Tornou-se senhor da rua. Não
havia cão que por ali parasse. Ou que o parasse.
Já há uns dias que ninguém lhe punha a vista em cima. A Carla do rés-do-chão ainda se meteu algumas vezes no carro para o
procurar nas redondezas. Mas vinha sempre de lá sem ele.
Do prédio em frente saiu uma senhora loira com um saco de plástico na mão
cheio de ração. Enquanto se dirigia à taça de comida, olhava para todos os
lados, esperando que o gato coxo fizesse como sempre fazia e viesse ter com ela.
Nada. Estranhou. Olhou em volta…mas nada, outra vez. Voltou para casa, literalmente
com o saco cheio.
De tarde foi a vez do dono do Mike, o cão que também vive no prédio em
frente. Meteu-se no carro, deu umas voltas pelas ruas que ficam ali mais acima,
regressou. Parou no meio da estrada, saiu do carro, abriu o porta-bagagens.
Tirou de lá um saco de ração e um garrafão de 5 litros de água. Olhou em volta e….nada.
Mesmo assim deixou comida e água ao bicho, não fosse ele aparecer e ter fome.
Da varanda fui-me apercebendo disto tudo. Com o coração pequeno. O que raio
tinha acontecido ao gato, pensei eu.
Nessa tarde, quando voltei a ver a Carla, perguntei-lhe se já tinha
encontrado o gato. Disse-me que não. Que tinha sido levado há 3 dias por duas
senhoras da rua de cima para ser esterilizado. É que o raio do gato tinha como
hábito ir ter com as gatas das vizinhas e não lhes dava tréguas. Depois da
operação, as senhoras, que mal não lhe queriam, libertaram-no perto da
autocaravana que está estacionada num dos cantos do nosso parque de estacionamento.
Mas, desde esse dia, há 2 dias, mais ninguém lhe pôs a vista em cima.
Explicou-me a Carla que lhe tinham feito uma espécie de armadilha para o
apanhar, porque de outra forma ele não iria com elas. À bruta. Tal foi o susto
que, quando se viu livre das mãos delas, desapareceu.
Pensei que a história do gato ficaria por aqui, e que não o voltaria a ver,
mas não. A Carla não desistiu e voltou a procura-lo. Enfiou-se mais uma vez no pinhal
e por lá andou quase uma hora. Do gato, nem vê-lo.
Quando se preparava para voltar a casa, lembrou-se de passar pelo pinheiro
onde ele tinha por hábito esconder-se dos cães que tantas vezes o perseguiam
quando era mais pequeno. E lá estava ele, bem lá em cima. Num daqueles ramos onde
só os gatos conseguem chegar. Encontrámo-lo…
Quem me conhece sabe que prefiro cães. Mas rendo-me a este gato…
E lá está ele agora, à hora que escrevo estas palavras. Naquele cantinho
onde nenhuma mão humana lhe pode fazer mal. Dali não sai. Nem se aproxima da
lata de paté de atum. Mas daqui a uns dias, espero, o susto passou.
Quanto às vizinhas da rua de cima, podem dormir descansadas. Ou não. É que,
no que depender deste “quebra-corações”, as crias das suas gatas já não vão poder ter genes com esta pintarola.
Porque como alguém um dia disse, “um gato é um italiano educado em Inglaterra.
Sente como um italiano mas porta-se como um lorde”.