12 de janeiro de 2014

A história da formiga verde de lábios vermelhos

Está frio, chove, ficámos sozinhas em casa. O resto da malta teve que sair.

Por isso, hoje foi dia de arrumações. É, diga-se de passagem, uma boa forma de manter a Carlota ocupada.

O que ela gosta mesmo é abrir os armários da minha roupa. Tirar tudo cá para fora, dobrar peça por peça, e voltar a guardar.

Confesso que, de vez em quando, me dá um jeitão.
Depois de tudo passado a pente fino, chegámos à sua gaveta preferida: a das “roupas dos brilhantes”.

Lá de dentro saíram os tops e os lenços com lantejoulas, que tanto sucesso fizeram nos tempos em que as saídas à noite pediam roupa mais arrojada.

Roupa que usava do alto dos meus poucos quilos, quando a Kapital era o nosso poiso principal.

Estávamos no início dos anos 90 e aquele era O spot.

Sextas e Sábados. Dias sagrados. Estávamos lá sempre batidas. Divertimo-nos ali durante muitos anos. Era quase uma segunda casa, uma segunda família.

No meio das roupas brilhantes, lá num canto, meio enrolada - até esquecida - uma camisola ainda mais especial. Que me fez recuar 9 anos no tempo.
A da formiga verde a pintar os lábios de vermelho. Pestanuda.

Nas costas, dizia “Ao maior exemplo de força e coragem”. Engoli em seco, quando li aquilo.
 

Por momentos deixei o meu quarto virado para o meu pinhal e viajei até ao piso 4 do Hospital Garcia de Orta. Aterrei no quarto 27.
Era um dos quartos onde ficavam os casos mais graves. Foi o meu quarto por alguns meses.

Ali passei os dias mais duros da minha vida. Ali chorei de dores. Ali pendurei fotografias de quem gostava. Ali recebi os que apenas o corpo dali saía todos os dias, porque a alma ficava sempre. E ali recebi as piores notícias.

Mas foi também naquele quarto que recebi as melhores. Onde dei enormes gargalhadas e onde ganhei amigas para o resto da vida. As minhas enfermeiras. Poucas vezes nos vemos, mas sei que as marquei, tanto quanto elas a mim.
No dia em que saí, deixei-lhes um quadro que dizia “Convosco foi muito mais fácil!”. E delas, para além das memórias guardadas no coração, trouxe a camisola da formiga verde a pintar os lábios de vermelho.

Respiro fundo, e estou de volta ao meu quarto. A Carlota entretanto vestiu a camisola. Está-lhe boa. É certo que eu estava magra na altura, mas ela também está crescida. Foi há 9 anos. Tinha 1 ano.
A rir-se pergunta se a pode levar amanhã para a escola. Digo que não, que não a quero estragada.

Despe-a, dobra-a com cuidado, coloca-a na gaveta já arrumada e diz-me “então fica aqui, por cima, para nunca te esqueceres”.
E não esqueço. Porque é um bom exemplo de que, mesmo dos piores momentos, podemos retirar lições e encontrar forças para enfrentar os próximos.

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