Sair do quentinho da casa num dia cinzento e de chuva para ir votar, já
custa. Sair do quentinho da casa num dia cinzento e de chuva para ir votar, chegar
lá e não o poder fazer, acreditem, custa muito mais. É a minha história de hoje.
Vou tentar resumir.
Nunca falho uma eleição. Seja para o que for, sinto-o como um dever mas,
acima de tudo, um direito. Direito do qual não abdico. O de me
expressar.
Fiz como sempre, dirigi-me à escola cá da zona. Levava comigo o nº de
eleitor, para ser chegar, encontrar a mesa, votar e vir-me embora. Mas desta vez
não foi bem assim.
Quando cheguei, percebi que a mesa de voto que me estava destinada tinha sido
colocada no primeiro andar daquela escola antiga. Onde sempre votara e no r/c.
Perguntei como poderiam fazer, responderam-me que a urna não podia descer,
mas que podiam chamar os bombeiros e eles subiam comigo as escadas.
Obviamente que recusei. Por vários motivos, mas essencialmente por dois: 1º
porque o acesso a pessoas com mobilidade reduzida deve estar pensado, não pode
ser um desenrasque. 2º porque, mesmo com bombeiros, subir uma escadaria é perigoso
e, em último caso, se caísse era eu que me magoava. Por muita boa vontade que existisse,
seria sempre eu a lixar-me com a brincadeira.
Por isso, e perante a hipótese dos bombeiros e outras pessoas que
amavelmente se dispuseram a ajudar, agradeci mas recusei.
Estava lá o meu presidente da Junta. Em quem sempre votei. Pediu desculpa,
tentou resolver, pôs a hipótese de fazer deslocar a urna ao r/c, “mas quem
manda é mesmo a presidente da mesa”. E é.
A minha mãe, já a entrar em modo “tou-ma-passar”, bufava por todos os
lados. A minha irmã desdobrava-se em telefonemas e contactos para perceber se
fazer descer a urna era, ou não, uma ilegalidade. Uns diziam que sim, outros
que não, que era até uma obrigação, tendo em conta que tinham metido a pata na
poça. A Carlota seguia tudo com atenção. Visivelmente irritada, mas já cheia de
fome, só perguntava quando é que, afinal, íamos almoçar.
Tivemos nisto uma hora. Durante essa hora foram vários os que me tentaram,
simpaticamente, convencer. “Levamo-la ao colo”, “pegamo-la às cavalitas”… Mantive
sempre a calma. E a palavra. Respondi que não, que tinham que perceber a minha
decisão, que não podia ser incoerente com o que defendia e pelo qual lutava há
tantos anos, que estava em causa um direito meu, e que, se cedesse, estaria a
contribuir para que tudo continuasse na mesma. Tinham-me arranjado ali um problema,
teriam que o resolver de uma forma justa, que não acarretasse perigo para mim,
e que não me obrigasse a expor-me. Perceberam que se não arranjassem uma solução
que encaixasse nos meus parâmetros de dignidade, estava resolvido: não votaria,
lamento.
Todos compreenderam a minha posição. Tirando uma imbecil que fazia parte da
mesa onde eu devia votar, que só sabia dizer entre dentes “mas porque é que ela
não sobe com os bombeiros? Até os acamados sobem…”. Minha senhora: isso é
que era bom. “Isto não é um circo e, se estivesse na situação dela,
faria o mesmo”, respondeu-lhe a minha irmã, sem dar mais conversa.
Uma hora depois, a presidente da mesa, uma senhora bastante acessível e
sensata, em conjunto com a Assembleia de Voto da minha mesa e de outra que se encontrava
no piso térreo, e ainda do delegado da Junta de Freguesia (ufff!), tomou
finalmente a decisão de deslocar a urna cá abaixo. Desabafou, entretanto, que
já esperava que uma destas acontecesse, quando viu 4 mesas sem acesso. E
aconteceu. Foi comigo, mas podia ser um velhote ou com alguém com uma perna
partida. Ou, ou, ou, porque mobilidade reduzida é muita coisa.
Parou tudo. Encerrou-se a mesa lá em cima. Explicou-se às pessoas que aguardavam
na fila o que se ia passar e que teriam que esperar mais um bocadinho. Eu, cá
em baixo, votei. Cumpri o meu dever. Como cidadã que quer ter uma palavra a
dizer.
No fim, pedi o documento para fazer a reclamação formal. Que preenchi
religiosamente. Mas nos “motivos de reclamação”, em nenhum a minha
encaixava. Sem problema, adaptei uma das hipóteses que falava em “deslocação de
urnas”, que complementei com um texto breve mas esclarecedor nas “observações”.
A frase chave foi “sem acesso para pessoas de mobilidade reduzida”.
O que vai acontecer agora não sei porque isto é burocracia atrás de
burocracia. Mas do meu lado está feito. Aquilo há-de chegar à Comissão Nacional
de Eleições e espero que algo mude. Acima de tudo porque o mudar aqui é simples
demais para que não aconteça. Bastava que não tivessem arriscado e que
tivessem colocado todas as mesas de voto acessíveis. E, acreditem, espaço ali
não faltava. Até porque havia pavilhões fechados. Os mesmos onde votei nas
últimas eleições. “Ah e tal, são do ATL, este ano a escola não nos deu
autorização…”. Pois, mas devia ter dado. E, se o tivesse feito, nada disto tinha
acontecido. Era uma questão de respeito, de igualdade. E de consideração por quem
já entra no jogo em desvantagem.
Mas, afinal, também não sou eu que tenho que encontrar solução. São eles. Aqueles
que passaram os últimos dias a apelar ao voto e a relembrar que é o dever de
todos os cidadãos responsáveis. De quem depois exige ter voz.
Enfim…eu só queria ter chegado lá, como qualquer outra pessoa, exercer o meu direito/dever, o que for,
e sair com o sentimento de dever cumprido. Mas este ano foi difícil. Este ano foi o ano em que (quase não) votei.