Do jovem negro que foi morto à porta da escola, da coadopção de crianças por casais homossexuais.
E isto lembrou-me uma história que me aconteceu recentemente e que quero partilhar convosco.
Num destes dias, quando voltei para casa depois do trabalho, a Carlota já tinha jantado e estava à minha espera. Depois do beijo de olá começou a desbobinar as novidades da escola. Percebi que ia demorar e disse “espera, vem com a tia para o quarto porque, enquanto me contas, a tia vai-se despindo.”
Esparramou-se em cima da minha cama, observou-me durante algum tempo em silêncio. E de repente disparou “não te importas de não andar?”. Respondi “Querida,
claro que preferia andar, mas a tia já está habituada e é feliz assim…sabes
disso, não sabes?”. “Sei”, respondeu. Nisto saltou da cama, deu-me um abraço apertado
e segredou-me ao ouvido “também ficas a saber que gosto muito mais de ti assim
do que se andasses, percebeste? És uma tia muito fixe”. Engoli em seco e
apertei-a.
Antes da Carlota nascer, a minha mãe dizia que nos sonhos lhe aparecia uma miúda
linda, cheia de caracóis loiros. Já eu pedia uma miúda esperta e com um feitio
parecido com o meu.
Certo é que alguém nos ouviu. Saiu-nos uma miúda gira, de cabelo loiro
desalinhado, espertalhona, cheia de energia, meiga. E torta. Canária, portanto.
Lembro-me que tivemos que esperar alguns meses até lhe conseguirmos prender
um raio de um gancho ao cabelo, porque nasceu careca e assim se manteve durante bastante
tempo. Quando finalmente lhe cresceu o primeiro caracol, a luta passou a ser
convencê-la a manter os ganchos no cabelo mais que 5 minutos. Com o tempo, lá
conseguimos.
Desde muito cedo que tive a sorte de poder participar na educação da Carlota. E tratar dela era a parte que mais encantava. Primeiro porque
era a filha da minha irmã, metade de mim, depois porque era uma enorme prova de
confiança da sua parte deixar a filha bebé com uma pessoa como eu que, quer queiramos quer
não, tinha uma limitação. E sei que, sempre que a deixava comigo, ficava 100% descansada.
Mas rapidamente me habituei a cuidar da Carlota, mesmo com esta limitação. Primeiro
com a ajuda da minha mãe, mais tarde já sozinha. Não fazia de uma maneira, fazia de outra. À minha maneira. Uma das coisas que mais
gostava era sentar-se ao meu colo, virada para a frente, amarrada a mim por um
lenço a fazer de cinto de segurança. E assim passeávamos pela cozinha, e assim
eu aproveitava para lhe preparar o jantar.
Depois passava-a para a cadeirinha, dava-lhe a sopa, a “papa boa” (o prato
principal), a fruta. Sim, também cantava, fazia palhaçadas, o avião, isso tudo.
E porque a cadeira da papa tinha rodas, empurrava-a pela casa fora. O que ela se
ria… Às vezes chegava a levá-la assim até à minha casa de banho onde, enquanto
eu secava o meu cabelo, ela brincava com os bonecos que levava consigo. Quando
olhava para trás, já dormia profundamente…Uma delícia.
Mas, mesmo sendo muito pequena (2 ou 3 anos), sempre senti que a Carlota
comigo sabia que precisava de ajudar. Ou, pelo menos, não dificultar. E não me
lembro de nenhuma birra.
Mas esta forma de estar, esta percepção de que a tia precisava de mais ajuda, notou-se mais ainda à medida que foi crescendo. E tenho a certeza que o facto de ter crescido comigo por perto a despertou para perceber que há pessoas com necessidades diferentes, mas que não são nem melhores nem piores que as outras.
E a prova veio com o tempo. No infantário onde andava, tinha um
coleguinha de cadeira de rodas, com uma deficiência profunda. Um dia,
percebendo que esse colega se aproveitava desse facto para não
fazer um jogo com os outros miúdos, decidiu interferir. Levantou-se e, de mão
na anca disse “olha, ficas a saber que tens que fazer o que nós fazemos porque
não és diferente. Eu tenho uma tia lá em casa que faz TUDO! Até se pinta!”. Até
se pinta…Pelo amor da santa! Ora eu fazia tudo, banho, jantar, tratar, tudo, e ela
lembra-se da pintura!
Foi a (maravilhosa) forma que ela encontrou de explicar
ao colega que ele não era diferente dos outros. Porque, no exemplo que tinha em
casa, a Carlota nunca sentia essa diferença.
Lembro-me que quando era pequena e andava comigo na rua, deitava a língua de
fora a todos os que ficavam especados a olhar. Hoje já não liga tanto mas,
rata, olha para mim de lado para perceber se eu também estou a vê-los. Se
estou, trocamos um olhar cúmplice, piscamos o olho uma à outra, e seguimos.
Para a Carlota não há isto de "ser diferente". A Carlota não fica a olhar para um
negro. Gordo é igual a magro. Rico é igual a pobre. Ter uma deficiência ou não, so what? Ser gay não é ser anormal. Um
anão “é tão querido…!”. “Porque o importante é o que está lá dentro”, diz ela
do alto dos seus 9 anos.
Para a Carlota não existe preconceito. E espero sinceramente que, o facto de ter crescido comigo por perto, juntamente com a educação que lhe tem sido dada, tenha
contribuído para que seja como é.
E se for sempre assim, vou ser uma tia ainda mais babada. Ok, ok, se é que isso é possível...
A Carlota tem mesmo muita sorte ... Ou Vice-versa !!!!
ResponderEliminarOlá,
ResponderEliminarHá muito que não deixo aqui um comment. :)
Esta coisa do preconceito é algo muito dificil de combater e afastar, mas tal como exemplificaste não nasce connosco é algo q vamos somando acrescentando e aprendendo a fazer à medida q crescemos. Está claro q é algo q como sociedade deveriamos nunca aprender, mas enfim os factos são outros e precisamos remar para que tudo se modifique.
Nem por acaso vi ontem o filme "Chocolate" de Lasse Hallström, e o que o padre Henry diz no seu ultimo sermão do filme é muito bom, podes(m) procurar no youtube (em inglês sem legendas). Se poderes(m) revejam o filme por inteiro.
Ressalve-se que eu e divindades não andamos de mãos dadas, mas pronto o q é bom é bom venha de onde vier. ;)
Beijinhos e obrigado pela partilha.
Bruno
As crianças têm uma intuição muito apurada :)*
ResponderEliminarCanarinha linda, ADORO o que escreves! Teria o maior orgulho que fosses minha filha! Dos meus quatro filhos, a mais jovem tem a tua idade.
ResponderEliminarUma sobrinha às direitas!! :')
ResponderEliminarOla,acabei de ver a tua entrevista! Queria te fazer uma pergunta,como é que fazias o jantar,ias buscar o leite,essas coisas,tens uma casa adaptada? Porque eu também estou numa cadeira de rodas,tenho uma filha com 3 anos e estou na fase da negação!
ResponderEliminarOlá Nuria,
EliminarA tua casa tem que estar minimamente adaptada. Tens, pelo menos, de ter tudo à mão. Não sei se vives sozinha mas acredito que tenhas alguém que te possa ajudar a ter essa parte planeada para que possas tratar sozinha da tua filhota.
Qt à fase de negação, ela é normal. Mas pensa que tens uma filha linda, que precisa de ti e que te vai ver sempre como um exemplo. Será sempre a tua melhor amiga!
Boa sorte e atenção que o caminho é sempre em frente!
Bj,
marta
Ola,olha diz me uma coisa,tu já foste a Londres,foste ao Wellington Hospital? Se foste,diz lá a opinião acerca dele?
ResponderEliminarOlá Nuria, estive el Londres há muitos anos e não me lembro do nome do hospital. Na altura não havia tratamento para lesões medulares, mas deves pedir ao teu médico que te aconselhe. Eles sim, estão balizados para te aconselharem. Não te aventures sozinha e sem seguires o que eles dizem porque muitas vezes vais ao engano e vens de lá desiludida.
EliminarFala com quem te acompanha ao nível médico. Eles são as pessoas certas para te indicar um caminho.
Um bj,
marta