19 de fevereiro de 2013

I Will Survive!

Hoje estive o dia todo a contar os minutos para chegar a esta hora. Queria muito partilhar convosco mais uma história.

Bom, digamos que esta não é bem uma história. É mais uma memória. E daquelas que o meu cérebro, se tivesse algum juízo, esquecia. Ou não. Mas, antes de começar, mais um dado importante para que percebam porque é que me lembrei disto hoje. Porque sonhei com este dia. Quase como ele se passou.
Por fim, um alerta: este texto exige algum…estômago!
Devíamos estar perto do final de Abril de 2005. E eu já internada há cerca de quatro meses, intervalados com algumas melhoras que me devolviam ao meu mundo, à minha casa, à minha família. Mas que dias depois me faziam regressar ao hospital porque voltava a febre, ou seja, a bicharoca. A septicémia, causada por uma escara infectada na nádega, estava a ganhar terreno.

Fui uma primeira vez ao bloco para fazer uma abertura na perna. Os médicos queriam conseguir chegar às “partes moles” (carne, músculos, etc) porque achavam que, atacando a bactéria na zona, na sua zona, o tratamento seria mais eficaz. Durante semanas mantiveram-me a perna com essa abertura para irem fazendo limpezas localizadas.
Mas aquilo não estava a resultar. O raio da febre não paráva e, ao fim da tarde, fazia-me sempre uma visita. Um amor, portanto.

Até ao dia em que os médicos, eu acho que quase em desespero, decidem avançar e ir mais fundo. Chegar ao osso.
Nunca mais me vou esquecer do dia em que um grupo de homens de bata branca entra no meu quarto, e um deles me diz “Vamos que mudar o tratamento, temos que ir mais longe.”

Era o chefe de serviço. Um excelente técnico (e não digo excelente profissional porque, para mim, excelente profissional tem também que ter um lado mais humano, que este não tinha). Olha para mim e diz-me claramente “Marta, somos da opinião de que a bactéria está alojada no teu fémur, mas só conseguimos ter a certeza abrindo mais, chegando mais perto. Vendo.”
Fiquei a olhar para ele à espera que me dissesse mais qualquer coisa. Qualquer coisa que resolvesse aquilo, um caminho. Uma solução, pá! E ele acrescentou “Por isso, vais agora para o bloco e o que se vai passar é o seguinte: se o problema estiver na cabeça do fémur, tiramos-ta, se estiver em toda a perna, amputamos-te a perna, se já tiver passado para o outro lado (anca)…”. Calou-se e baixou a cabeça. Havia um ser-humano ali dentro, afinal.

Como não sou burra nem estava balhelhas, percebi o recado. Se estivesse na anca, já nada podiam fazer, a não ser continuarem a dar-me antibióticos e acreditar que o corpo ia acabar por reagir. Algo que até ao momento, era um facto, não tinha acontecido. Ou seja, sem parar a porcaria da bicha, nada a fazer.

Olhei para ele, depois para o médico assistente, um espanhol pouco mais velho que eu e com quem já tinha estabelecido uma relação mais próxima. Lindo, diga-se de passagem! Percebi que era grave. Respirei fundo. Mesmo fundo. E respondi “Vamos a isso. Se é mesmo assim, se é para ir, é agora.”. Ele respondeu que sim, que iam preparar o bloco.
Na altura não sabia mas o ortopedista que me operou, e que anos depois me tratou de uma perna partida, contou-me que nesse dia estava de banco e que lhe disseram apenas “Tens que vir rápido. Temos ali uma miúda que, se não for tratada rapidamente, se apaga.”

As enfermeiras, na altura já grandes companheiras de “aventura”, prepararam-me para descer. E lá fui eu, sempre deitada na minha cama. Lembro-me de ir pelo corredor do serviço, passar por elas e de as ver de lágrimas nos olhos. E a passarem-me as mãos pela colcha que me tapava como quem diz “Vai correr bem”. Se eu tinha acabado de saber a gravidade da situação, elas já a sabiam. Há que tempos.
Enquanto descia no elevador que nos levava ao bloco, percebi claramente que aquela era a minha hipótese de me safar. Nem sei bem o que senti. Só sei que não parei de chorar de medo. Sim, medo daquilo não funcionar – estava farta de tratamentos que nada tinham adiantado - e de ter que ficar à espera de algo que poderia nunca acontecer.

Quando cheguei ao bloco fui transferida para outra cama, acho que esterilizada. E deixaram-me à espera encostada a uma das paredes, num daqueles corredores onde cada porta é um bloco operatório. Via as enfermeiras a passar, os médicos, os auxiliares. E pensava “Eu não pertenço aqui, caraças. O meu lugar é esparramada no sofá lá de casa a ver televisão e enrolada numa manta. O meu lugar é a ver a Carlota a crescer e a ser uma referência na vida dela. Esta merda vai passar.”
A certa altura, há um médico que olha para mim, vê-me a chorar, pára e diz “Então? Uma cara tão bonita a chorar? Não pode ser…”. Respondi-lhe que estava com medo. Ele deu-me a mão e disse-me que naqueles blocos tinha que se entrar a pensar que se ia sair bem. Era um médico veterano, com cabelos brancos. Experiente e com ar de Pai-Natal. Mas aquela touca cheia de bonecos tipo banda desenhada fez-me rir. Vá, sorrir. E ele disse “Isso mesmo. Uma miúda gira não pode chorar. Vai correr bem”. E vai-se embora.

Passados uns minutos uma enfermeira conduz-me até ao bloco. Um sítio gelado, com paredes de mármore, cheio de máquinas esquisitas. E um monte de enfermeiros a correr de um lado para o outro. Passado um bocado entram os meus médicos. Os cirurgiões. Mas acompanhados pelo ortopedista. O tal que tinha sido chamado para “safar a miúda”. Ah, e a música que se ouve nos filmes durante as cirurgias é verdadeira. Os meus médicos ouviam rock. Pensei: 'Tou feita!
Vejo o espanhol que me pisca o olho. Depois apaguei-me com uma bela anestesia geral.

Lembro-me de acordar no recobro cheia de fome e a perguntar quando é que ia poder comer um bife com batatas fritas. Os enfermeiros de serviço riram-se e disseram “Quanto muito damos-te um suminho, mas tens que beber devagar…”. Devia ser o pior sumo do mundo mas, na altura, soube-me ao melhor.
Passadas umas horas volto ao serviço e ao meu quarto. E vejo os sorrisos rasgados das enfermeiras. Tinha corrido bem, e elas já o sabiam.

Quando o tal médico, o chefe de serviço, entra no meu quarto disse com o seu ar austero mas, pareceu-me a mim, com um sorriso nos olhos “Confirma-se. O teu fémur estava desfeito pela bactéria, tivemos que o retirar, limpar e a coisa parece que ficou com bom aspecto.” Agora iam ser carradas de antibióticos, análises todos os dias, mais carradas de antibióticos, mais análises todos os dias. E ver se resultava.
E assim foi durante semanas e semanas e, de um momento para o outro, os períodos de febre começam a ser mais espaçados. E mais espaçados. E mais espaçados. Até pararem.

Sabendo que eu tinha boas condições em casa, os médicos arriscam mandar-me para casa com os Cuidados Continuados. Ou seja, com o serviço de enfermagem móvel do hospital que, 2 vezes por dia, me ia dar o antibiótico intravenoso.
Com a medicação fui melhorando. E fui deixando de estar enjoada. E comecei a comer. E a ganhar peso. E, finalmente, a recuperar.

Foram minutos que pareceram horas. Foram horas que pareceram dias. E foram 5 ou 6 meses que mudaram para sempre as nossas vidas.

Depois de tudo isto - acho eu que depois de uns 8 ou 9 meses entre ter sido internada e regressado a casa - decido voltar devagarinho ao trabalho. Primeiro remotamente, porque tinha mesmo que ir com calma. Mas um dia quis mesmo ir lá. À empresa. À minha sala. À minha mesa. E estava tudo como eu tinha deixado. Fez-me bem sentir que continuava a fazer parte daquilo. Como se nem um dia tivesse estado fora dali.
E no meu coração não tinha. A minha vida tinha ficado apenas em stand-by. E era chegada a altura de voltar a carregar no play. Hoje faço rewind muitas vezes, porque gosto de recorrer aos ensinamentos que me ficaram destes dias. Mas, quem me conhece, sabe que o estado normal é mesmo o forward! E, de preferência fast forward...

PS – Não me levem a mal, mas não quero elogios por ter passado/utrapassado tudo isto. Oiço-os há 23 anos, desde que fiquei de cadeira de rodas. Agradeço-os, claro, e até os compreendo. Mas a única coisa que quero que entendam com esta história é que, por muito má que a situação seja, quando tudo parece que não funciona, se acreditarmos que nos safamos, safamo-nos mesmo.
Ah, e para terminar, só podia ser em grande:

Bactéria de merda, esta é para ti!

2 comentários:

  1. Pois...as vezes ouço pessoas discutirem ou a reclamarem da vida sem nunca terem passado por qualquer tipo de dificuldade mais severa...faz-me imensa confusão, não que deseje que alguem passe por qualquer tipo de dificuldade,seja ela qual for mas realmente só quem as vive é que aprende a respeitar o cotidiano e a facilidade com que se pode encara-lo sem estarmos sempre a queixar-nos de qualquer coisinha futil ou a discutir com as outras pessoas por nada.....Bjs. Marta Ps:Viva ó SPORTING!!!

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